O inimigo do meu inimigo, meu …

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No próximo ano os Estados Unidos vão celebrar dois séculos e meio de existência, contando a partir da Declaração de Independência, feita a 4 de julho de 1776, em Filadélfia, e brindada com madeira, o vinho preferido de vários dos Pais Fundadores, incluindo George Washington, o primeiro presidente. O tratado de paz, porém, só foi assinado em 1783, e por muito que parecesse extraordinário que a Coroa Britânica tivesse cedido perante as 13 colónias rebeldes, dificilmente alguém imaginaria o novo país a tornar-se a maior das potências mundiais. Ora, uma das razões da supremacia americana, que se afirmou no século XX e continua até hoje, é a geografia. Não falo só da extensão territorial, nem da imensa rede de rios navegáveis e da abundância de portos naturais, nem das riquezas minerais, que incluem petróleo e gás natural. Falo também de estar protegido a Leste e Oeste por dois oceanos e, sobretudo, com vizinhos a Norte e a Sul que se tornaram aliados, apesar das guerras do passado (em especial com o México, mas em 1812 também com os britânicos no que é hoje o Canadá). E não serão as picardias atuais, sobre tarifas e outras, a desfazer essa realidade.

Nem a China, que cada vez mais os americanos identificam como grande rival, nem a Rússia, herdeira dessa União Soviética que chegou a ser a mais poderosa inimiga dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, gozam das mesmas benesses da geografia. Claro que ambas têm recursos enormes, proporcionais a territórios imensos (com clara vantagem russa), mas as vizinhanças são historicamente hostis, e de forma mais ou menos dissimulada isso dura até hoje. Lembremo-nos que o Vietname, a Índia e Japão tiveram guerras no século XX com a China. Ou no historial de guerras entre a Rússia e, por exemplo, a Turquia (na versão Império Otomano), a Polónia ou a Finlândia.

Mesmo a China e a Rússia, que hoje partilham muitos interesses estratégicos, têm um passado conflituoso. Tão conflituoso que até quando o comunismo era comum aos líderes de Pequim e de Moscovo foi possível a Washington fazer uma aproximação à China e pô-la no lado dos Estados Unidos contra a União Soviética durante a Guerra Fria.

Com Donald Trump na Casa Branca, a sensação é que a China é assumidamente o rival, e que com a Rússia é imaginável a normalização depois da tensão total entre Washington e Moscovo durante a presidência de Joe Biden, após a invasão da Ucrânia. Até se pode especular se Trump não imagina algo tão espectacular como o que conseguiu Richard Nixon quando visitou a China em 1972 e afastou Mao Tsé-tung de Leonid Brejnev, desta vez separando Vladimir Putin de Xi Jinping. À custa da Ucrânia, claro, e perante o desagrado dos aliados europeus. É improvável, mas...

Contudo, nesta competição entre grandes potências, o novo aliado que os Estados Unidos mais serão tentados a procurar é a Índia. Afastando-a pouco a pouco de uma velha amizade com a Rússia, mas sobretudo aproveitando a desconfiança entre Nova Deli e Pequim, que olham com suspeita uma para a outra, cada qual do seu lado de uns Himalaias que já foram terreno de guerra e continuam a ser até hoje palco de escaramuças entre tropas indianas e chinesas. De sublinhar que se Trump e Biden são o oposto em relação à Rússia, mas quase iguais em relação à China, também no que diz respeito à Índia esta Administração americana mostra continuidade em relação à anterior.

Olhemos, pois, sem esquecer a guerra no Leste Europeu, com muita atenção para o que se passa no Indo-Pacífico, para como esta competição entre grandes potências na era Trump afeta ainda, além do caso óbvio de Taiwan, também países como o Paquistão, as Filipinas, as duas Coreias ou mesmo a Austrália.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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