O incrível Ruben A.

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“Incrível” é o que não se acredita que possa acontecer, de tão admirável. Os gramáticos são muito claros: só perante condições muito especiais é possível qualificar alguém deste modo. Ruben Andresen Leitão integra-se plenamente nesse qualificativo, pela obra que nos deixou, pela vida que teve e pela capacidade que demonstrou não só por transmitir o que sentia, mas também por ter deixado a semente para fazer compreender que o gosto pelas nossas coisas não pode ser fechado ou autossuficiente, uma vez que precisa de ser aberto, cosmopolita, inconformista e desassossegado. Ruben foi a um tempo um cultor da inovação e da agitação de ideias e um investigador sereno e sistemático da historiografia, com provas dadas, bem como um defensor ativo e apaixonado do património cultural, num sentido amplo, material, imaterial, abrangendo ainda a natureza, a paisagem, as tecnologias novas e a criação contemporânea. Ao reler Orlando Ribeiro com seu método de ir ao campo e de dialogar com as pessoas, sentindo os seus sentimentos e compreendendo os seus anseios, encontrou um modo especial de amar a terra e os seus povos, mas sobretudo de cultivar a História como um terreno comum para nos conhecermos melhor num intercambio interminável em que tudo ganhamos pelo relacionamento com os outros. Acreditava numa cultura universal e comum, a começar no que estava próximo de casa, bem ciente de que no caso português o que é próprio projeta-se pelo mundo num permanente diálogo baseado no “melting pot” peninsular que nos construiu e que nos permite ser uma cultura de acolhimento sempre disponível para a viagem, com todo o mistério que comporta. Assim como disse do rei D. Pedro V, cuja memória admirou intensamente, que foi o primeiro homem moderno que houve em Portugal, ele mesmo foi alguém que amou não apenas os passos avançados, mas também a fidelidade às raízes. Como disse do fundador do Curso Superior de Letras, dedicou grande parte do tempo ao problema da cultura e da educação “que considerou fundamental para que se note a mínima parcela de progresso em que o país se pudesse embrenhar”. Para Ruben não havia contradição entre as tradições e os costumes ancestrais e a audácia iconoclasta, que segundo a lenda, o levou um dia a dialogar nu com a estatuária grega, para melhor sentir a vertigem dos séculos.

Leia-se, mas leia-se mesmo, A Torre da Barbela. É uma obra-prima de entusiasmo literário, de humor subtil e requintado, com uma erudição extraordinária. Não há dúvida anacrónica, e no entanto o diálogo delirante obriga a uma grande atenção aos diferentes momentos históricos. Sente-se Portugal em busca do tempo. Como reconheceu Jacinto do Prado Coelho, a “originalidade” do autor é uma “aventura necessária”. Trata-se de um diálogo crítico que merece leitura atenta, a ponto de ser uma referência única na literatura portuguesa contemporânea, só possível graças à autoria de um profundo conhecedor da cultura e da historiografia, mas muito mais do que isso, um analista inteligente da realidade do seu tempo. Aliás, se Ruben A. nos legou outra obra fundamental, como são as suas memórias O Mundo à Minha Procura, é porque pôde realizar um retrato soberbo não apenas da sua singularidade, mas do seu lugar no tempo.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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