Há um precioso tesouro que merece ser revisitado apesar de ser centenário desde as suas origens (1924). Falo do Guia de Portugal, dirigido por Raul Proença e completado por Santana Dionísio, que pretendeu ser “simultaneamente um minucioso roteiro do país; um reportório artístico; uma obra de sólida literatura descritiva; uma antologia da nossa literatura pitoresca; um processo; um testemunho dos estrangeiros sobre Portugal; e, enfim, uma bibliografia escolhida do que se tem escrito sobre o nosso país”. Proença foi exemplo do cidadão atento, profissional de grande competência na biblioteconomia e no estudo das ideias, um dos fundadores da "Seara Nova", que esteve nas origens da “Renascença Portuguesa”, propondo uma visão diversa da de Teixeira de Pascoaes de acordo com um patriotismo prospetivo. O Guia de Portugal procurou fazer entre nós o que foi o célebre “Baedecker”, iniciado em Koblenz na Alemanha, em 1828, seguindo os passos dos Manuais de Viagem do britânico John Murray. Para realizar o seu projeto, Proença quis ter a seu lado os melhores escritores, mas também os melhores especialistas em história de arte, geografia física e humana, arqueologia, etnografia e antropologia. Reuniu uma plêiade cultural, onde se destacavam Aquilino Ribeiro, António Sérgio, Reinaldo dos Santos, Jaime Cortesão, José de Figueiredo, Afonso Lopes Vieira, Câmara Reis, Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, Orlando Ribeiro, Júlio Dantas, Hernâni Cidade, Raul Lino e Rodrigues Miguéis. São notáveis os textos apresentados e Proença teve o cuidado de dizer que o Guia não pretendia ser um bonzo doméstico para o “fútil destino de ornamentar as estantes e os móveis das saletas”. Como ensinavam as minhas mestras Maria Luísa Guerra e Maria Arminda Zaluar Nunes, trata-se de “um companheiro de viagem (…) pronto a ser consultado a cada momento”. Não havia viagem que não devesse ser acompanhada por esse extraordinário “vademecum”.O drama pessoal do coordenador impediu-o de completar o magnífico projeto, mas graças a generosas vontades e por fim à Fundação Gulbenkian podemos dispor de oito preciosos tomos que são uma obra-prima da cultura portuguesa. Em andanças pelo País a fazer descobrir os recantos desconhecidos, José Sá Fernandes quis, por exemplo, partir do histórico Guia de Portugal para essa peregrinação, do mesmo modo que nas magníficas Visitas Guiadas de Paula Moura Pinheiro encontramos tantas vezes a sombra da memória de Raul Proença e da sua obra indispensável. O “best-seller” continua. Ao fim de tantos anos, o país mudou profundamente, a realidade é outra, mas o mais antigo património cultural e as suas raízes imateriais estão vivos, não como referências nostálgicas, mas como expressão de uma sociedade que se foi abrindo e ganhando em dimensão cosmopolita. Pretendeu uma ação política e pedagógica que teria como base “criar em Portugal estas duas coisas absolutamente novas: uma elite consciente e uma opinião pública esclarecida”. Conhecer e estudar o património cultural e as suas raízes históricas fazia parte dessa tarefa. Há, pois, um espírito de abertura e adesão às doutrinas novas da Europa, em coerência com os mestres da Geração de 70, visando uma Renascença política e social da cultura portuguesa. Daí a necessidade de peregrinar na terra portuguesa para conhecer melhor a natureza, as paisagens e as gentes.Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian