O grande teste ucraniano
A invasão russa da Ucrânia e o crescimento do poder chinês no Indo-Pacífico sinalizam o momento de transição na construção de uma nova era prevista nos conceitos estratégicos russo e chinês: o objetivo comum de acabar com a hegemonia norte-americana.
Essa meta, que aos nossos olhos surge ameaçadora da ordem demoliberal que nos habituámos a viver, define-se pelo cunho autocrático e visa afastar o mundo económico, social e político que os EUA foram liderando no espaço Ocidental (na asserção de “Ocidente alargado”, como o Kremlin gosta de rotular e que, na verdade, extravasa o Ocidente geográfico e hoje inclui países como o Japão, a Coreia do Sul ou a Austrália).
A ascensão da ordem autocrática sino-russa implica, essencialmente, três componentes: 1) o robustecimento económico de Pequim, crescentemente ameaçador do domínio americano a esse nível; 2) a construção de alianças alternativas com países como Brasil, Índia, África do Sul, Arábia Saudita, Paquistão (embora estes cinco com nuances que mantêm algum tipo de proximidade a EUA e Ocidente, como é disso exemplo Zelensky querer que seja a Índia a albergar a próxima Cimeira da Paz) ou, claro - e nestes casos de forma mais evidente - o Irão e a Coreia do Norte; 3) a afirmação de uma suposta legitimidade de desafiar o direito de fronteira pós II Guerra Mundial, a coberto de um suposto imperialismo de conquista, baseado em revisionismos históricos, desenhados à medida dos interesses momentâneos dos ditadores locais.
Todo este movimento constitui, para nós, europeus, uma séria ameaça ao nosso modo de vida e aos valores que supusemos serem seguros nas últimas décadas - sobretudo desde que, há dois anos e meio, Vladimir Putin se atreveu a tentar invadir a Ucrânia.
Uma guerra de agressão na ponta Leste da Europa - em que o maior país do mundo em área e maior potência nuclear em quantidade de ogivas desafia, pela invasão ilegal, o maior país europeu em área (segundo maior, se incluirmos a Rússia no continente europeu) - é, sem dúvida, o grande teste ao que poderá prevalecer, perante os dois grandes blocos geopolíticos que estão a formar-se, mesmo à frente dos nossos olhos, que só deixaram de estar distraídos a 24 de fevereiro de 2022. Mesmo que, uma década antes, a anexação russa da Crimeia tivesse sido sinal de alerta tão gigantesco que se torna difícil de compreender como líderes como Obama, Merkel, Cameron ou Sarkozy não o tivessem percebido na altura.
Embora com diferenças internas relevantes, países como Rússia, China ou Irão assumem-se hoje com uma dualidade difícil de lidar; são autocracias em que o interesse do povo é subjugado a uma suposta superioridade da projeção da grandeza nacional, mas tentam jogar numa suposta legitimidade externa, baseada na disputa pela primazia das organizações internacionais que contestam, ao mesmo tempo que vão criando outras, alternativas, mais à medida dos seus cunhos autoritários.
Prevalecer pelo exemplo
A Ucrânia viu-se apanhada nesta curva apertada da História. Não abdica de defender a sua soberania e integridade territorial - e deixou isso bem vincado quando, há dias, celebrou os 33 anos da sua independência em relação à extinta URSS.
A corajosa, ousada, arriscada, mas certamente genial (nas dimensões operacionais, simbólicas e estratégicas) incursão ucraniana em Kursk provou-nos que a Ucrânia está bem ciente de que o pior cenário para quem, em Relações Internacionais, quer fazer prevalecer os seus interesses fundamentais é demonstrar fraqueza, tibieza e vazios de poder.
Meio ano de hesitações e adiamentos por parte da maioria republicana no Congresso dos EUA custaram uma desvantagem estratégica no terreno que os ucranianos ainda estão a tentar mitigar. A juntar a isso, uma nova vaga de hesitações por parte de aliados cruciais como EUA, Reino Unido ou Alemanha em relação à extensão da legitimidade ucraniana de utilizar armas ocidentais em território russo limitou, fortemente, a possibilidade de as forças de Kiev travarem os ataques russos na região Kharkiv, municiados por alvos militares nas zonas fronteiriças de Belgorod, Kursk ou Bryansk.
Sem receio do cariz sigiloso da operação ousada, a Ucrânia impôs-se pela surpresa e pelo rasgo - e perante o sucesso da incursão em território russo tem agora um respaldo dos seus aliados que, provavelmente, nunca teria caso tivesse tido a prudência de solicitar uma autorização que devia ter tido, mas que tardava em chegar.
Kiev prevaleceu pelo exemplo - e pela força da razão das suas necessidades, totalmente legítimas, de defesa do seu território e consequente obrigação de inibir o inimigo de capacidade de lançar novos ataques, esses sim, criminosos e carecidos de qualquer tipo legalidade.
O arrojo proveio da necessidade. E a eficácia, até agora, da ação está a fornecer um novo tipo de margem negocial a quem, há dois anos e meio, se vê na iminência de ter de ceder território para beneficiar de uma suposta paz - que não mais seria que o congelamento de um conflito em que o invasor sairia fortemente premiado.
Quem duvida que isso o levaria a buscar por mais? Como Zelensky nos tem incessantemente recordado, “não se pode negociar com um maníaco”.
O que se segue?
Enquanto a tensão cresce no Médio Oriente, e com o calendário a mostrar que faltam apenas 70 dias para a eleição presidencial nos EUA, russos e ucranianos parecem beneficiar de uma certa pausa mediática para pensar em novos passos nesta guerra que continua a ser incomportável.
Para a Ucrânia, os riscos de estender a ousadia em solo russo - foram os primeiros a fazê-lo em oito décadas, desde os nazis na II Guerra Mundial - são imensos. Mas, como acima se tentou explicar, nada fazer teria talvez tido riscos ainda mais acrescidos.
Das tropas de Kiev, e da cabeça do general Sirsky, já vimos feitos surpreendentes (basta verificar mais três quilómetros que, em Kursk, as tropas ucranianas terão avançado nos últimos dias). Mas não será de prever que a Ucrânia consiga prosseguir por território russo, sob pena de perder a capacidade de manter o controlo do que foi inesperadamente ocupado. É bem mais crível que Kiev aproveite os ganhos militares no terreno para os usar no campo negocial mais tarde - mesmo que isso não signifique regressar às fronteiras pré-24 de fevereiro de 2022.
A Ucrânia conta com a ajuda preciosa dos seus aliados, mas sabe que continuará a lutar - com ou sem eles. Por isso aposta, cada vez mais, na produção própria. No final da semana passada, os ataques na Rússia foram feitos com Palianytsia, o primeiro “rocket drone” de longo alcance, de conceção e fabrico 100% ucraniana. Zelensky promete mais armas 100% ucranianas, embora insista que isso não substitui a necessidade de continuar a receber armamento Ocidental.
É muito fácil - e parece até especialmente avisado e sensato - identificar os riscos e a imprudência da insistência ucraniana de ocupar território russo. Mas convinha, antes de enviarmos quaisquer conselhos aos nossos amigos ucranianos, lembrarmo-nos do que os levou a terem de assumir tão ousada jogada.
Talvez assim percebêssemos que estamos mesmo todos juntos - europeus do espaço UE, europeus extra-UE, europeus que pretendem aderir à UE, norte-americanos, canadianos, australianos, neozelandeses, japoneses, sul-coreanos - neste nosso destino ucraniano.
Nem todos têm a grandeza da coragem. Mas ainda menos conseguem perceber de onde ela vem.