Há 80 anos, a 24 de outubro de 1945, entrou em vigor a Carta da ONU, aprovada quatro meses antes, em São Francisco. Por isso, essa data em outubro é celebrada anualmente como o Dia das Nações Unidas. Refiro-me à parte política da organização. As agências especializadas, por exemplo a FAO, a UNESCO, a OMS, a OIT e todas as outras, surgiram em momentos diferentes. Cada uma tem a sua história, como também possui as suas estruturas de governação específicas, independentes da autoridade do Secretário-Geral (SG). Igualmente, com o tempo, foram surgindo programas e fundos especiais, como é o caso do PAM, do PNUD, da UNICEF, do FNUAP e de vários outros, uma lista extensa de siglas. Estes programas e fundos são chefiados por personalidades escolhidas pelo SG, na maioria dos casos em resposta a pressões exercidas por alguns Estados mais poderosos. Não pertencem à mesma divisão que engloba as agências especializadas. O sistema está em crise. Mas, se a ONU não existisse, seria necessário, mesmo nos dias confusos de hoje, inventá-la. É uma ideia frequentemente repetida. As Nações Unidas existem, não é necessário proceder a nenhum exercício criativo. Mas o presidente Xi Jinping, que também contribui para a marginalização da ONU e disso se quer aproveitar, propõe agora um sistema alternativo, inspirado na sua visão do papel central da China no mundo. Já havia proposto uma Iniciativa Global de Desenvolvimento, uma outra sobre a segurança internacional e ainda uma que designou por Iniciativa Global sobre a Civilização. Na recente cimeira da Organização de Cooperação de Xangai, que teve lugar há menos de dois meses, Xi completou o quadro e propôs a iniciativa que faltava, sobre a governação global. Ou seja, sobre os princípios que deveriam regular as relações entre os Estados. Quando digo que completou o quadro, refiro-me a quatro pilares fundamentais da ONU, do desenvolvimento, da paz, da dignidade humana e agora, ao político. A proposta de Xi sobre a governação internacional pouco mais é do que uma reafirmação do conteúdo da Carta das Nações Unidas dita por outras palavras. Os cinco princípios básicos que propõe sobre a governação global estão contidos na Carta. Xi refere-se ao respeito pela soberania de cada Estado, incluindo os regimes retrógrados e ditatoriais; à subordinação às regras do direito internacional; à defesa do multilateralismo e do papel das Nações Unidas, algo que a própria China não pratica quando não lhe convém; ao valor das pessoas, que devem ser a principal preocupação em matéria política; e à necessidade de se obter resultados concretos na solução dos problemas globais. Não há certamente qualquer desacordo significativo com estas ideias. A iniciativa chinesa é basicamente uma manobra política. O problema é que estes princípios são frequentemente ignorados por vários Estados-membros, a começar pelas grandes potências como a China, a Rússia e os Estados Unidos da América e por Estados fora da lei internacional, como a Coreia do Norte ou Israel. Assim, as Nações Unidas deixam de ser o fórum central das relações internacionais, de discussão e de resolução dos grandes conflitos. A culpa cabe a certos Estados-membros, e, em particular, ao mau funcionamento e à falta de representatividade do Conselho de Segurança (CS). A ONU tem sido completamente marginalizada nos casos da Ucrânia, de Gaza, do Sudão, de Myanmar, do fim do embargo contra Cuba e assim sucessivamente. Porém, o verdadeiro problema reside no CS: sem um Conselho que represente as realidades do século XXI, a ONU política continuará a viver no passado e condenada ao definhamento. O plano que o presidente Donald Trump fez adotar em relação à dramática crise de Gaza – um plano vago e praticamente impossível de ser levado a cabo nos seus pontos fulcrais – não menciona a ONU nem lhe atribui qualquer tipo de incumbência. Mesmo que venha a ser discutido no Conselho de Segurança, uma hipótese ainda não confirmada, os diversos pontos impostos pelo presidente Trump não têm em conta a experiência acumulada em situações similares. É um plano que não foi negociado pelas partes interessadas – Israel e a Palestina –, ou seja, não seguiu um procedimento fundamental em matéria de construção da paz. Receio que pouco consiga obter para além da libertação dos reféns ainda vivos, da liberdade para um conjunto de prisioneiros detidos em Israel e uma abertura humanitária temporária e insuficiente face às necessidades absolutamente básicas dos civis ainda sobreviventes em Gaza. O SG está a tentar implementar um processo de reforma da organização, a que chamou UN80. Na realidade, o esforço pouco mais não é do que uma resposta burocrática à crise financeira da organização. Em vez de insistir, dia e noite, junto dos Estados faltosos para que paguem a tempo e horas as quotas e as contribuições obrigatórias que devem, e de definir claramente o que justifica a existência da ONU, o SG resolveu seguir a opção que passa melhor junto de certos líderes e dos seus ministérios das finanças: eliminar postos de trabalho, reduzir o âmbito e o funcionamento das missões no terreno, transferir serviços para cidades onde o custo de vida é mais baixo do que em Nova Iorque ou em Genebra. O refrão é “fazer menos com menos recursos”. Na verdade, deveria ser um outro: “fazer a paz e promover a dignidade humana exigem a contribuição de todos e o respeito pela voz corajosa da ONU”. Essa asserção é a única que é coerente com a defesa da cooperação internacional e do multilateralismo. Foi isso que aprendi e apliquei ao longo de décadas. Conselheiro em segurança internacional.Ex-secretário-geral-adjunto da ONU