O livro de Miguel Carvalho, Por dentro do Chega – A face oculta da extrema-direita em Portugal (Objectiva, 2025), que tenho vindo a ler, é uma excelente oportunidade para compreender, com factos, o que se está a passar à nossa volta. E um aturado relato de como a vida político-partidária mudou - e está a mudar - rapidamente, acompanhando a aceleração e a superficialidade intencional do nosso tempo.Cinquenta anos depois do 25 de Abril, provavelmente está esgotado o desenho político que este inaugurou, o que é, de alguma forma, natural. Cada vez são menos os eleitores testemunhas diretas desse tempo formativo, cada vez são menos os eleitores que se sentem como parte de qualquer escolha ou criação original, cada vez menos vinculados a compromissos ideológicos ou coerências com o passado. Não surpreenderia que PSD e PS, duas âncoras de representação política, mas, infelizmente, dois enormes bocejos democráticos e duas grandes casas de acolhimento de menores e de maiores em risco, a par de gente capaz e comprometida com o serviço a favor da comunidade, também seguissem nos próximos anos o destino de CDS, PCP e Bloco de Esquerda.Não por acaso André Ventura foi inventado no seio dessa conjuntura imparável que é o oportunismo próprio, o oportunismo alheio – no caso, de alguns sociais-democratas de perfil autárquico e de uns quantos mais graduados, a quererem abocanhar o CDS – e o universo CMTV, feito de futebol, crime e histeria. Na expressão de um dos autores, depois, terão falhado a “pôr-lhe o açaime”. Ventura soube valorizar-se – bom comunicador, boa imagem televisiva, uma retórica assertiva e clara – e percebeu que a melhor forma de crescer era desenvolver a dimensão de culto pessoal e de seita, explicada em soundbites através da língua franca dos cafés de subúrbio e dos táxis. Ao contrário de PSD e PS, que até preferem que ninguém os procure, às suas sedes feias e bafientas ou aos seus caciques locais com décadas de jogo e as suas clientelas permanentes, o Chega, em nascimento, aproveitou tudo o que pôde para crescer, num contexto de normalização internacional da xenofobia e da mentira pública. A banalização do escândalo público e o desaparecimento do pudor em coletivo, movimentos que aproveitou e para os quais contribuiu, protegem-no agora.Tal como por exemplo Belmiro de Azevedo percebeu nos anos 80 que seria uma questão de tempo a grande distribuição chegar a Portugal – e que mais valeria liderar esse processo imparável e altamente rentável –, como sucedera por toda a Europa quando em contextos como o que Portugal vivia à época, seria também impossível que a revanche de extrema-direita, anti-estrangeiros e anti-imigração não chegasse também.Ventura foi o seu intérprete, turbinado por um afluxo muito relevante de estrangeiros “diferentes” entre 2015 e 2019, pela investigação a um ex-primeiro-ministro por corrupção e pela sua capacidade de chegar a milhares e milhares de pessoas que, pela primeira vez, percebiam o que um político estava a dizer. Subvalorizar o valor da “linguagem clara”, mesmo que possamos dela discordar no conteúdo, é um erro grosseiro. Mesmo quando essa “linguagem clara” se aproxima da mentira ou da indecência. O seu objetivo não é o de convencer ninguém de uma realidade alternativa. Para Ventura, basta criar a dúvida sobre a realidade e apresentar um estado de plausibilidade que possa ser considerado como aceitável por uma mediania pouco exigente. E, claro, ter o nível adequado de sonsice e chico-espertice que o português tanto preza e exercita. Por isso, “isto não é o Bangladesh” ou “os ciganos têm de cumprir a lei”. A ninguém, pelos vistos, causa estranheza que um candidato à Presidência da República só passe mensagens sobre estrangeiros ou sobre uma comunidade ultraminoritária. A incapacidade de nos colocarmos no lugar do outro, assoberbados pelas tarefas quotidianas, pelo swipe permanente do tédio e por uma vontade mesquinha de vingança sobre qualquer coisa que aparente sucesso, faz o resto do caminho – após o lançamento do fósforo.Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa