As praxes, sejam académicas ou corporativas, tendem a tornar-se espaços de abuso: um local para onde convergem frustrações, comportamentos desviantes e uma exibição degradante alimentada pelas redes sociais. O que deveria ser um rito de integração ou de iniciação transformou-se num palco de humilhações, coações, violência e até crimes, cometidos ao abrigo da “coragem em grupo”. Historicamente, a praxe nasceu com a pretensão de integrar novatos – estudantes, recrutas ou novos membros de corporações – num ambiente comunitário, ensinando-lhes disciplina, espírito de grupo, respeito pelas hierarquias, camaradagem e sentido de pertença. Nas universidades, a praxe destinava-se a acolher caloiros, ajudar na adaptação, fomentar laços de amizade; nas forças militares ou de segurança, à coesão e à transmissão de valores; em equipas desportivas, ao espírito de grupo e ao compromisso mútuo. Sendo bem orientada, poderia servir como rito de passagem, de aceitação, de responsabilidade, com benefícios teóricos de união, solidariedade, senso de compromisso e pertença. Contudo, é inegável a emergência de um padrão: a generalização dos abusos. A suposta “autorregulação” interna falha cronicamente: quem deveria vigiar acaba conivente, o medo converte-se em silêncio e vai perpetuando a violência, e o anonimato institucional protege os abusadores. A lista de casos chocantes não tem fim. Há poucas semanas, um jovem bombeiro terá sido sexualmente violado pelos seus colegas, nas camaratas da corporação. Em praxes académicas, violentas e desumanizadoras, o culminar da desregulação ocorreu tragicamente com as mortes de seis estudantes na praia do Meco, em 2013, naquele que foi um dos episódios mais sombrios da história das praxes no país. A violência psicológica parece ser a base metodológica das praxes académicas: insultos e humilhações, que acontecem à vista de todos, sem que se observe qualquer sobressalto cívico. É vê-los pelas ruas das cidades: de um lado, os pseudo-doutores, a berrarem ordens e palavrões; de outro, os caloiros, amarrados, ajoelhados e abusados, às ordens dos primeiros. Não poucas vezes, são enfiados em água gelada, espezinhados na lama, despidos, apalpados, abandonados em descampados a meio da noite. Uma barbárie, que muitos dizem que é consentida pelas vítimas, como se a ameaça do estigma não fosse um fator condicionante da sua vontade. Neste estado de coisas, o mínimo que se pode exigir é a garantia do direito inalienável de qualquer pessoa recusar a participação em qualquer espécie de praxe, sem estigma, sem chantagens sociais e sem pressões de grupo. Os casos extremos a que temos assistido não têm sido exemplarmente punidos, enquanto as instituições sempre se esquivam de qualquer responsabilidade, mesmo quando os abusos acontecem nas suas instalações ou contextos, sejam universidades, corporações, clubes ou outros. No passado, quando desempenhei funções numa reitoria, cheguei a defender modelos de praxes mais benignas, temáticas, solidárias, como forma de integração. Mas, face ao que vejo hoje, deixei de admitir o meio-termo: o único caminho aceitável é proibir toda e qualquer praxe. A manutenção destes rituais de opressão e violação da dignidade não honra o espírito de pertença nem de comunidade: só perpetua dor, medo e injustiça. Professor catedrático