Durante décadas, a BBC foi a instituição-matriz do jornalismo de serviço público. A sua credibilidade era a bitola; a imparcialidade, um farol para o mundo mediático num mar de ruído. O recente debate sobre o vídeo manipulado de Trump é apenas sintoma de um problema estrutural: a erosão da neutralidade, patente sobretudo na cobertura do conflito em Gaza, onde o ativismo interno começa a substituir a busca pela verdade factual. O caso BBC deve servir de espelho a outras redações – em Portugal, o diagnóstico talvez não fosse muito diferente.No cerne está a ascensão de um pensamento militante, hoje relevante nas redações ocidentais. Nascido de causas socialmente legítimas — igualdade, diversidade, justiça —, esse pensamento evoluiu para uma ideologia prescritiva que define o bem e o mal, os oprimidos e os opressores, e exige alinhamento moral em vez de escrutínio racional.No jornalismo, este padrão é tóxico: troca o dever de perguntar pelo instinto de proteger, subvaloriza a dúvida, eleva a convicção e transforma o repórter num guardião moral. Assim, a imparcialidade cede à empatia seletiva e a verdade à coerência ideológica.No conflito em Gaza, esta lente moral distorce a complexidade. Israel deixa de ser um Estado analisado pelos seus atos, tornando-se símbolo do “opressor” ocidental e capitalista, enquanto o Hamas aparece revestido de narrativa de resistência. A realidade é forçada a caber neste enquadramento. Vimos isso na cobertura inicial da explosão no Hospital Al-Ahli, em Gaza, quando a BBC difundiu sem verificação a versão do Hamas que apontava Israel como responsável por “centenas de mortos”. Dias depois, a verdade contrariava a narrativa, mas a correção surgiu tarde e sem o mesmo eco. O mesmo padrão repetiu-se na operação no Hospital Al-Shifa, noticiada de forma acusatória sem base factual sólida.Outro reflexo dessa ideologia é a neutralidade ativa: a recusa em classificar o Hamas como grupo terrorista, criando sob pretexto de equidistância um falso equilíbrio moral entre ação terrorista e resposta estatal. A neutralidade deixa de proteger o rigor para proteger sensibilidades.Esta transformação resulta menos de conspirações organizadas e mais da cultura interna: a captura do espaço jornalístico por uma geração formada sob normas académicas de verdade relativa e moral subjetiva, onde códigos de justiça social se impõem à objetividade. O resultado é um jornalismo emocionalmente engajado, intelectualmente empobrecido.Num tempo em que as redes sociais premeiam a velocidade e a viralidade, o papel das redações não pode ser o de meros replicadores do imediato. O verdadeiro valor do jornalismo reside em validar factos, cruzar fontes e resistir à pressão do instante. Mais do que recolher informação, num mundo em que o paradigma é o excesso de informação e a informação conflituante, é preciso analisá-la com objetividade e rigor — só assim o jornalista se torna guardião da veracidade e antídoto eficaz contra desinformação e propaganda digital. O futuro do jornalismo dependerá cada vez menos do acesso e cada vez mais da inteligência analítica que separa o ruído dos factos.A BBC, símbolo histórico de rigor, tornou-se paradigma desta crise. Ao substituir a dúvida pela certeza moral, perdeu a confiança do público, e a neutralidade deixou de ser virtude para se tornar suspeita. Quando redações escolhem causas, não factos, o jornalismo deixa de servir a verdade para servir narrativas.O caminho de volta não será fácil. Mas a profissão só recuperará relevância regressando à disciplina do facto e ao desconforto da dúvida. Para isso, o jornalismo deve evitar a tentação de se proteger atrás do argumento fácil de que os órgãos de comunicação social das democracias estão sob ataque de grupos como o trumpismo ou outros populismos. O verdadeiro antídoto contra a erosão da confiança não está apenas na denúncia do ataque, mas na coragem de não ceder à polarização reativa. Só a exigência de análise objetiva, validação rigorosa das fontes e recusa do imediatismo pode restaurar o papel do jornalismo como garantia da verdade e contrapeso à desinformação.O jornalismo deve relatar o que acontece, não o que se espera que aconteça. A objetividade não é frieza: é a forma mais corajosa de respeito pela complexidade humana. Só assim o farol da verdade voltará a iluminar o mar onde hoje reina a tempestade.Analista de Estratégia, Segurança e Defesa