O eterno retorno do mesmo

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In my end is my beginning
T.S. Eliot

Por vezes ocorre-me pensar que o ciclo da vida nos traz ao nosso princípio quando nos abeiramos do nosso fim: como se me enroscasse na posição fetal, enrolo-me nas minhas memórias e é através delas que encaro e enfrento o mundo.

Aconteceu que um partido com assento parlamentar convocou uma manifestação para cercar a sede do partido que tem maioria na Assembleia. Como não evocar o cerco ao congresso do CDS em 1975, momento em que, segundo o testemunho de Mário Soares, o líder socialista chegou a telefonar à federação do PS no Porto pedindo que ajudassem os centristas, que eram tratados de "fascistas" por aqueles que os cercavam? Invertem-se hoje as posições e são os verdadeiros fascistas que vêm cercar a sede de um partido democrático.

E como não recordar também o cerco à Assembleia Constituinte, em novembro do mesmo ano de 1975, quando o primeiro ministro de então, almirante Pinheiro de Azevedo, proferiu a famosa declaração "chateia-me estar sequestrado"?

Tudo isto mostra que o Chega tem vontade de recriar o PREC, não nos pontos positivos e libertadores que teve, mas na desordem e na violência antidemocrática de que, pelos vistos, o Chega tem saudades.
Como Fátima Bonifácio notou e a seu tempo saudou, o Chega teria tido o grande mérito de "desinibir a direita". Como parece que a direita há muito deixou de estar inibida, tendo assumido diversas vezes o governo de Portugal em regime democrático, eu diria antes que o Chega fez a direita "perder a vergonha": o racismo, a xenofobia, a intolerância e a violência deixaram de ser tabus, num estranho ambiente em que se assiste a um "retorno do recalcado" fascista (mais fascista ainda do que o salazarismo de que se reclamam), que alastra na opinião pública.

A direita democrática, que se agarrou ao PS naquele "Verão Quente", rejeita-o agora sem complacência. É natural. O thatcherismo neoliberal conquistou o PSD, sob a liderança de Passos Coelho, afastando-o da sua longínqua matriz social democrata. Sá Carneiro sonhava com o modelo de sociedade das social democracias nórdicas, o atual PSD suspira pelas taxas de crescimento do PIB daqueles países onde não chegou o Estado social. E só faltaria termos a aliança desse neoliberalismo extremista com os fascistas do Chega!

É verdade que um Estado forte, mesmo uma ditadura, não é incompatível (viu-se no Chile) com essa nova espécie de liberalismo económico, bem longe de Adam Smith e de Schumpeter, em que a banca e a especulação financeira fazem por mandar nos Estados e estrangular a economia produtiva. Esta perspetiva não pode deixar de estar presente na nossa reflexão e na nossa ação.

Esta violência irredutível e irracional evoca-me (com saudades, porque nesse tempo eu andava pelos vinte anos) o lado irredutível e tantas vezes injusto que assumiu o PREC. Mas, no meio de todos os nossos erros, o desejo dos poderosos e contraditórios movimentos sociais que então emergiram apelavam para a justiça social e para a igualdade de oportunidades. Este PREC de extrema direita, pelo contrário, apela para a injustiça institucionalizada, para a exclusão dos que são diferentes, para a opressão e para a crueldade.

O meu princípio veio assim encontrar o meu fim, no momento em que "o sono da Razão produz monstros", como anunciava Goya. Terei então que assistir, com a minha idade, a um cerco a uma sede de partido, que evoca todos os cercos que já referi, mas também o incêndio das sedes do Partido Comunista em 1975? Teremos então que tudo recomeçar?


Diplomata e escritor

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