O Estado da nação 2

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A malta lê, lê até muito, garantem-me, e eu aposto que estamos a falar de ler o feed das redes sociais e pouco mais do que isso. Os livros parecem assustar os mais novos e os mais velhos, e mesmo fenómenos literários no Tik Tok de book influencers (só a designação me provoca desconforto) aparentam ser uma boa-prática mas, muitas vezes, são isentas de critério. Fui à livraria e preciso de vos dizer isto: existem livros maravilhosos.

A Literatura é um alimento para o cérebro e ajuda-nos a perceber temas e realidades, a mudar de ideias, a pensar. A Literatura serve para pensar. Agustina Bessa-Luís costumava dizer que escrevia para incomodar, o princípio é o mesmo. O entretenimento é, como a palavra indica, outra coisa: eu diria até que serve precisamente o fim oposto – enquanto estamos entretidos, não estamos a pensar..

Hoje temos livros publicados com a aparência da grande Literatura e que, espremidos, são apenas para isso, entreter. Temos livros com fonte de letra em tamanho grande, entrelinhas generosas, capítulos pequenos, tudo para facilitar o cérebro do leitor, mas temos também temáticas que são ondas, obedecem a tendências.

Neste momento há no mercado uma santa trindade: violência – saúde mental – autoficção. Ora, ninguém consegue viver só com desgosto e um leitor treinado sabe que, por pior que seja a história narrada, preferencialmente, deve existir sempre qualquer coisa que salve, qualquer coisa que permita uma certa redenção. É assim nos grandes clássicos, do Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez a Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago; de Luzes de Leonor de Maria Teresa Horta à Ronda da Noite de Agustina Bessa-Luís.

A imaginação é o território fundador de qualquer escritor que pode, e deve, ser um observador da natureza humana – do seu tempo, caso opte por escrever sobre o que lhe é contemporâneo –; mas a imaginação, “a louca da casa”, conforme a designou Santa Teresa de Ávila (e cuja expressão Rosa Montero, a escritora espanhola, aproveitou como título de um dos seus livros, corram a ler, caso não o tenham feito já!), precisa de ser estimulada. Um escritor não faz decalques da realidade, vai muito mais longe. E sente o que as personagens sentem, vive o que elas vivem. Não é o contrário, as personagens não servem para imitar a vida real. A Literatura é mais do que isso.

O jornalismo, que tanto namora com a Literatura, é outra arte que importa cuidar. Miguel Carvalho, jornalista freelancer, publicou o livro Por Dentro do Chega (edições Objetiva) e o momento em que abri o volume foi de imensa satisfação. Por várias razões: o Miguel Carvalho é o melhor jornalista de investigação da sua geração, tem do jornalismo o mesmo entendimento que eu e que tem por base uma coisa muito simples, mas cada vez mais difícil de encontrar: a capacidade de ouvir os outros, estar com eles, tentar compreender as suas razões, mesmo que discordando. Este livro, em vésperas de eleições autárquicas e presidenciais, é um ato de correção social, chamar-lhe-ia a grande escritora e jornalista Maria Teresa Horta. Miguel Carvalho trabalhou neste volume de 752 páginas durante cinco anos, e fê-lo com a intensidade das coisas que apaixonam, porque é a única forma de fazer jornalismo. Aí concordamos novamente. O retrato do partido que hoje ocupa um lugar que era inimaginável em 2020 é, também, o retrato de um país, de uma desilusão, de um sistema. É igualmente um trabalho de uma seriedade a toda a prova, com os dados bem claros, as fontes confirmadas e reconfirmadas, os documentos lidos uma e outra vez. Como o jornalista nos leva pela mão é uma arte. E, não sendo esta uma obra de Literatura, representa outra maneira de promover pensamento, de agitar ideias e de corrigir factos. É um livro sobre a verdade de um partido, dos seus militantes, financiadores, apoiantes isolados ou até escondidos. Miguel Carvalho é um fervoroso defensor da democracia, a Liberdade talvez seja a sua palavra mais estimada. Este livro, depois de todos os que já assinou, comprova: o bom jornalismo está vivo e recomenda-se; e mostra que o medo não tem qualquer hipótese de vergar aquilo que se sabe ser certo. Conta-se a história de um partido de extrema-direita com a lisura com que se contaria outra qualquer história, porque é indiferente se este partido é hoje distinto do que era há cinco anos, quando se pensava que Marrocos poderia ser um destino para o seu líder; quando se advogava a hipótese de ser considerado um partido ilegítimo. Hoje estamos longe deste cenário, não há planos de fuga nem gente incrédula com o que acabou de ouvir, há uma dimensão de boçalidade que arrepia e que vive da grande ilusão de um discurso construído em cima da figura do líder, do seu putativo carisma, e pouco mais. O partido teve mais de um milhão de votos. Se todas as pessoas que votaram lerem este livro, dificilmente cometem o mesmo erro. O drama, com o qual este partido conta, é que a malta lê pouco, não é? E se provássemos o contrário? Não era incrível?

Escritora e jornalista

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