O esforço invisível – Uma reflexão sobre a PSP e o estado a que chegou

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A manhã começa cedo para muitos agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP). Antes mesmo do sol nascer, nos corredores de esquadras envelhecidas e marcadas pelo tempo, já ecoam os passos apressados. Aqui, o desgaste é visível em cada parede com tinta descascada, em cada cadeira que range, em cada computador que demora mais tempo a iniciar do que a fazer o próprio expediente diário.

Para além das esquadras, os veículos policiais, muitos deles com quilometragens que desafiam as lógicas dos seus construtores quanto à sua validade, continuam a patrulhar as ruas. Dentro deles, agentes com uniformes gastos, equipamentos obsoletos e, muitas vezes, uma arma num coldre que parece saído, por teimosia, de um inventário do passado e que se prende em tudo o que é espaços e saliências do habitáculo. Apesar de tudo, lá estão eles: firmes. Mas até quando?

A Realidade Oculta

Por trás das sirenes e da postura firme, está uma força policial desgastada. Não apenas pelos parcos recursos materiais, mas pela condição humana de quem os opera. Muitos polícias enfrentam não apenas turnos longos e imprevisíveis, mas também cortes de folgas sistemáticos e despachos de exceção que parecem alheios ao cansaço físico e psicológico acumulados. É como pedir a um atleta que corra maratonas diárias, mas sem o treino ou equipamento adequados – e, ainda assim, pedem-lhe vitórias e recordes.

O envelhecimento da força policial devia preocupar todos. O medo, a incerteza e a inquietude sobre o que representa ser polícia já contagiou a sociedade. E, com tímidos ingressos de novos agentes, o peso do trabalho recai sobre ombros que já carregaram mais do que deviam. Sobre quem viu coisas que nenhum ser humano deveria ver. Muitos estão doentes, cansados, mas continuam a trabalhar, não porque podem, mas porque são obrigados. E até quando? Diz-se na gíria, o polícia sabe quando entra de serviço, mas nunca quando sairá. Presentemente pode também dizer-se, sabe quando entrou para a polícia, mas desconhece sempre a data do último turno. E no final do dia, quem paga a conta deste esforço? As feridas e as cicatrizes psicológicas amontoam-se e são cada vez mais indisfarçáveis. E, os gritos de pedido de ajuda, em alguns casos, infelizmente, jamais se ouvirão – não desistam, enquanto houver um polícia, haverá sempre alguém que vos dará a mão. 

Entretanto, em reuniões de topo e declarações públicas, a conversa é outra. Para os altos comandos e o poder político, está tudo sob controlo. As estatísticas revelam, com pompa e circunstância, uma realidade conveniente, as aparências são cuidadosamente mantidas para tranquilizar quem vê de fora. Mas basta passar um dia no terreno – onde a vida e os seus problemas são reais e, não raras as vezes, cruéis – para se perceber que as imponentes muralhas não passam de um castelo de cartas, a desmoronar.

A desconexão entre a base e o topo da hierarquia é gritante. Enquanto os agentes lidam com as consequências dos recursos limitados e das condições extenuantes, as lideranças promovem uma falsa sensação de segurança e eficiência. É um jogo perigoso, num tabuleiro periclitante, onde quem perde não é apenas o operacional da PSP, mas também o cidadão que espera sempre a proteção desses bravos.

Não se tratam apenas questões materiais – trata-se de respeito e gratidão. Respeito por aqueles que dedicam suas vidas para proteger outras, mas que não recebem, em troca, o reconhecimento básico do exercício digno dessa mui nobre missão. 

Equipamentos modernos, horários humanizados, e sobretudo uma gestão integral que escute, compreenda, valorize, respeite e premeie efetivamente os polícias não são luxos – são necessidades elementares.

O sol já desapareceu, as caras já mudaram, mas o semblante, a determinação e o empenho são os mesmos, assim como os meios materiais e as condições – fechar as portas não é opção para a PSP, seria virar as costas à sociedade que rapidamente mergulharia em águas anárquicas.  Neste ciclo dinâmico infindável, a PSP espelha o sistema que representa e defende. Um polícia quando se sente esquecido e sobrecarregado, ele traduz o descuido com que o sistema, em falência, trata sistematicamente aqueles que estão verdadeiramente na linha da frente. 

E, enquanto a realidade for ignorada pelos que têm o poder para mudar, a segurança pública continuará assente na trave do sacrifício invisível de quem não tem escolha. Uma trave frágil, a ruir, que em breve cederá e todos seremos chamados a suportar. Aí dar-nos-emos conta da falta de segurança, pois já a havemos perdido.

O futuro da polícia dirá...

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