O Emprego no Limiar da Automação 

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Foi aprovado e já vigora o Regulamento (UE) 2024/1689 — conhecido como Regulamento Comunitário da IA — que estabelece um quadro jurídico uniforme e “risk-based” para o desenvolvimento, colocação no mercado e uso de sistemas de inteligência artificial na União Europeia. Enquanto se consolida o novo quadro europeu, o quotidiano acelera o ritmo de integração de IA e de automações. Nas grandes superfícies, a partir de certa hora da noite, as caixas de pagamento são substituídas por terminais automáticos. O fenómeno começa como gestão de “off-peak hours”, mas rapidamente se tornará a normalidade a curto prazo.

A redução de custos da iniciativa privada passa a sobrepor-se à liberdade de escolha do consumidor e à presença de trabalhadores em loja. A consequência é previsível e imediata: nos próximos anos haverá muito menos postos de trabalho no retalho. A automação não elimina todo o trabalho, mas reconfigura-o, comprimindo funções de caixa, reposição e apoio ao cliente para equipas cada vez mais reduzidas. O risco de rutura social será iminente. À medida que a substituição de pessoas pelas máquinas avança de forma silenciosa, o desemprego menos qualificado aumentará de forma inevitável e irreversível.

As consequências, sobretudo, nos municípios onde o grande empregador de base é precisamente a distribuição, serão dramáticas. Também na indústria, a tendência é conhecida: robots colaborativos e linhas flexíveis substituem progressivamente tarefas repetitivas desempenhadas por mão humana.

A narrativa da “libertação do trabalhador para funções de maior valor” é verdadeira no topo da pirâmide de qualificações; menos verdadeira a meio e na base da pirâmide. A médio prazo, o emprego industrial só se preserva com requalificação financiada e redesenho de processos que integrem supervisão humana significativa. Nos serviços, a substituição é paulatina e menos visível. Agentes de IA e software automatizado passam a tratar do atendimento inicial, reclamações simples, marcações, cobranças, triagem de sinistros, apoio jurídico e contabilidade mais simples.

O Regulamento europeu cria obrigações de transparência, gestão de risco, supervisão humana e documentação técnica — especialmente para sistemas de alto risco e modelos de uso geral —, mas não resolve a tensão central entre eficiência e a coesão social no mercado de trabalho. O problema é muito sério e é atual, não futuro. É aqui que se torna indispensável um debate legislativo nacional e, desejavelmente, a nível europeu, sobre a criação de quotas mínimas de emprego vinculadas ao volume de faturação, tendo em conta os diversos setores de atividade.

Não se trata de “proibir” a automação, mas de condicioná-la à manutenção de uma massa crítica de trabalhadores, de modo a garantir a empregabilidade e a redistribuição dos ganhos de produtividade. O desenho pode seguir uma lógica combinada de um número mínimo de trabalhadores por intervalo de faturação, por setor (v.g. retalho alimentar, retalho especializado, logística, serviços financeiros, alojamento e restauração, saúde, educação, etc.). Por seu lado, as poupanças com a automação deveriam servir para a criação de um Fundo de Compensação (à semelhança do que já existiu) que garantisse o financiamento da requalificação certificada, estágios remunerados e transição de carreira, com reporte público anual e verificação por entidade independente.

Constitucionalmente, a solução colhe fundamentação no interesse público inerente á necessidade de garantir a sã convivência entre o progresso e a coesão social, o combate à exclusão, a proteção de consumidores e dos trabalhadores e na obtenção de um equilíbrio entre liberdade de iniciativa económica e a proteção do trabalho. Não é um travão à inovação; é um pacto de transição justa que absorva os custos sociais do progresso tecnológico. 

O futuro do trabalho não pode ficar à completa mercê de ganhos de produtividade com a introdução de tecnologia; deve ser uma escolha política, transparente e responsável, feita a tempo, antes de as caixas vazias das grandes superfícies se tornarem metáfora permanente do vazio social que deixámos crescer. 

Advogado e sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados 

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