O discurso de JD Vance foi importante?

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Há dois problemas no discurso feito por JD Vance na Conferência de Segurança de Munique que me parecem muito mais importantes do que aquilo que aparentemente revoltou os líderes europeus, tratados como vassalos pelo vice-presidente dos Estados Unidos que, em representação do suserano Donald Trump, foi à Alemanha dar um raspanete em público à fidalguia europeia desta era de globalização made in USA.

O primeiro problema é que, na retórica sobre a limitação à liberdade de expressão, JD Vance tem razão. Claro que ele só deu exemplos de abuso de autoridade sobre a liberdade de expressão por parte de governos, legisladores, instituições e Justiça europeus em que os alvos foram pessoas com ideias de direita ou sobre temas caros à direita, como o fim do direito ao aborto ou a proibição da imigração.

Ele esqueceu-se, convenientemente, de casos como os de Julian Assange, preso anos e anos por divulgar violações dos Direitos Humanos por parte dos Estados Unidos; de Pablo Gonzalez, jornalista preso mais de dois anos na Polónia por alegada, e nunca provada, espionagem a favor da Rússia; do antigo ministro grego Yannis Varoufakis, proibido, tal como mais dois académicos europeus prestigiados e uma jornalista norte-americana premiada, de entrar na Alemanha para participar numa conferência sobre a Palestina, ou do professor de Russo Vladimir Pliassov, expulso da Universidade de Coimbra por supostamente fazer propaganda pró-Putin.

Os exemplos podiam ser muitos mais, passaram pela elaboração de legislação da União Europeia que autoriza as polícias a usar meios informáticos para espiar jornalistas, teve o grave precedente do cancelamento em toda a Europa de diversos canais de informação arbitrariamente classificados de “pró-russos” e, até, incluiu a ridícula anulação de inúmeros concertos sinfónicos de Tchaikovski, Prokofiev ou Shostakovich... E já nem falo da perseguição a quem tinha desconfianças sobre o processo de vacinação à covid-19.

JD Vance tem razão, a liberdade de expressão perdeu terreno na Europa, mas cai na hipocrisia porque ele não diz que essa liberdade está também a perder terreno na América de Trump, onde o seu governo acaba de proibir a utilização de palavras como “mulher”, “sexo”, “identidade”, “idoso”, “ideologia”, “pessoas com deficiência” e muitas outras palavras “malditas”, numa censura que abrange todos os departamentos governamentais e, até, estudos académicos que, de alguma forma, sejam financiados pelo governo - é o combate à anterior censura “woke” com uma nova censura “antiwoke”... Estão bem uns para os outros!

O segundo problema do discurso de JD Vance é que a frase mais importante que ele disse passou despercebida: foi sobre a necessidade de aumento de despesa militar na Europa porque, e cito, “os nossos amigos europeus devem desempenhar um papel maior no futuro deste continente (...), onde tomem a dianteira, enquanto os Estados Unidos se concentrarão em áreas do mundo que estão em grande perigo”.

Descodificado, o que isto quer dizer é que os Estados Unidos querem libertar-se da despesa militar na Europa para a fazerem contra a China, contra o Irão e contra os países do continente americano cujos governos lhe desagradem. Essa corrida armamentista, a subjacente escalada de ameaças e a provável multiplicação de guerras, mesmo depois de uma eventual paz na Ucrânia, nada trará de bom ao mundo e marcará profundamente o futuro próximo da Humanidade.

Jornalista

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