A Greve Geral é sempre mais do que a interrupção de transportes, escolas ou serviços. É um acontecimento colectivo que atravessa o corpo social, mas também o corpo psíquico. Nos dias que a antecedem e no próprio dia, instala-se um clima emocional particular: ansiedade, irritação, medo do imprevisto, conflitos, fantasias de perda. Algo do chão habitual deixa de ser seguro. E quando “falta chão fora”, é frequente que “falte também dentro”. Habitualmente, a insegurança externa perpassa o indivíduo.A Psicanálise, desde a sua origem, nunca esteve desligada dos abalos do laço social. Pelo contrário: interroga-se precisamente sobre o modo como as grandes decisões políticas, económicas e laborais se inscrevem na vida psíquica dos sujeitos. Uma greve, como suspensão e como protesto, é também um acto simbólico — e é nesse plano que ela merece ser pensada.Stress colectivo: o mal-estar diante do imprevistoA Greve Geral confronta a população com aquilo que o psiquismo tende a evitar: a perda de controlo. O comboio que não passa, a creche fechada, o hospital a funcionar em serviços mínimos, o patrão que pressiona, o salário que não chega. Situações que activam angústias arcaicas ligadas à imprevisibilidade e à dependência.Surge, então, um stress colectivo feito de irritabilidade difusa, impaciência e intolerância ao Outro. O Outro — o grevista, o sindicalista, o colega que apoia ou contesta — transforma-se, facilmente, numa figura onde se projecta a angústia própria. Não é raro ouvir frases como “não é dia para isto” ou “isto não muda nada” que, mais do que posições racionais, traduzem o desejo de que tudo volte rapidamente ao “normal”, mesmo quando esse normal é, ele próprio, fonte de sofrimento.Na clínica: quando o imprevisto toma a palavraNas semanas que antecedem uma Greve Geral, este clima emocional começa a emergir também no setting analítico. Pacientes que falam, aparentemente, de aspectos práticos — atrasos, faltas, reorganização da rotina — deixam entrever um fundo mais profundo: medo de não dar conta, fantasias de colapso, raiva sem destinatário claro. A greve funciona, muitas vezes, como um detonador que traz à cena angústias antigas, ligadas a experiências de perda de sustentação, falhas de cuidado, ou cenários de abandono.O Analista escuta, assim, não apenas o acontecimento externo, mas aquilo que ele activa na economia psíquica singular de cada sujeito.Instabilidade laboral: quando o trabalho deixa de sustentarO trabalho não é apenas fonte de rendimento; é, para muitos, um eixo fundamental da identidade e do sentimento de continuidade interna. Quando os direitos laborais são fragilizados, quando a precariedade se instala, ou se agrava, não é apenas o contrato que se desestabiliza — é a própria experiência de Si.A sensação de que “o ataque aos direitos de quem trabalha está em curso” instala um estado de alerta crónico, um desgaste físico e mental que se traduz em ansiedade, exaustão, depressão e sintomas somáticos. A Psicanálise ajuda-nos a compreender como esta instabilidade externa pode reactivar vivências internas de desamparo e insegurança, sobretudo em sujeitos que já conhecem, na sua história, experiências de falha de sustentação.Corpos esgotados, psiquismos sobrecarregadosClinicamente, este desgaste manifesta-se de múltiplas formas: dificuldades de concentração, perturbações do sono, crises de ansiedade, irritabilidade persistente, sentimentos de inutilidade ou de culpa por “não aguentar”. A precariedade não é apenas económica; ela infiltra-se no modo como o sujeito se representa a si próprio, corroendo a autoestima e a capacidade de investir no futuro.Quando o trabalho deixa de oferecer um mínimo de estabilidade simbólica, o sujeito fica mais vulnerável ao colapso psíquico, especialmente em contextos onde a exigência de adaptação permanente substitui qualquer ideia de cuidado.A greve como acto simbólico: suspender para dizerDo ponto de vista psicanalítico, a greve pode ser lida como um gesto de suspensão. Suspende-se o fazer para que algo possa ser dito. Suspende-se a produtividade para inscrever um limite. É uma interrupção que rompe com a lógica da eficácia a qualquer preço e que introduz as perguntas: até onde? e a que custo?Neste sentido, a greve é menos um “ataque” ao funcionamento social e mais uma tentativa de reinscrever um pacto que se sente quebrado. Quando a palavra não encontra lugar, o corpo colectivo fala através da paralisação. Não sem conflito, não sem resistência, mas com uma força simbólica que merece ser escutada.Suspender como possibilidade psíquicaNa clínica, a suspensão é uma condição do próprio trabalho analítico. Também aí se cria um intervalo em relação à urgência, à resposta imediata, à lógica produtivista. Se cria um espaço para elaborar a falta. A greve, enquanto fenómeno social, introduz algo semelhante: um tempo que incomoda porque impede a continuidade automática e obriga à confrontação com aquilo que vinha sendo silenciado. Se houver a possibilidade de elaboração, tal como na clínica, pode dar frutos, ao invés de secar.Como falar de greve com crianças, sem politizar?As crianças percebem mais do que imaginamos. Sentem a tensão dos adultos, notam as alterações da rotina, escutam fragmentos de conversa. O risco não está em falar, mas em não falar — ou em falar de forma excessivamente ideológica.Uma abordagem emocionalmente ajustada passa por explicar que há dias em que os adultos param para dizer que algo não está bem. Que essa paragem serve para tentar melhorar condições de vida e de trabalho. Não é necessário entrar em partidos, slogans ou acusações. Basta ajudar a criança a ligar o que vê ao que sente, nomeando o medo, a irritação, ou a confusão, tentando não os dramatizar, mas também não os negar.A função continente da palavraAo dar palavras simples ao que acontece, o adulto ajuda a criança a não ser capturada pela angústia difusa do ambiente. Este gesto tem um valor preventivo, evitando que a criança fique sozinha com fantasias catastróficas, ou culpabilizantes. Também aqui a Psicanálise sublinha a importância de uma palavra que contenha, em vez de inflamar.Greve à mesa: conflitos familiares e divisões internasA Greve Geral entra também nas casas e nas famílias. À mesa, surgem divergências que, rapidamente, se tornam passionais. Quem faz greve é acusado de irresponsabilidade; quem não faz é acusado de cumplicidade. É “preso por ter cão e preso por o não ter”. Muitas vezes, o debate racional cede lugar à violência simbólica.A Psicanálise lê estes conflitos como deslocamentos: a angústia face à perda de direitos, ao futuro incerto, ou ao medo de cair, é projectada no Outro familiar. O conflito político torna-se conflito íntimo. Reconhecer este mecanismo pode permitir algum recuo, abrindo espaço para escutar o que está, verdadeiramente, em jogo para cada um.Quando o político reencontra o infantilEm muitos destes conflitos emergem posições intensamente carregadas de afecto, pouco permeáveis à argumentação. Isso acontece porque o que está em causa não é apenas uma opinião, mas a reactivação de posições infantis: medo de perder o lugar, necessidade de segurança, vivências de rivalidade, ou exclusão. A escuta psicanalítica ajuda a compreender e elaborar esta sobreposição entre tempos psíquicos.E os Psicanalistas? Entre o acto, a escuta e a condição de trabalhadoresColoca-se, inevitavelmente, a pergunta: um psicanalista faz greve? A resposta não é única, nem normatizável. A Psicanálise não prescreve posições políticas homogéneas, mas interroga os lugares possíveis.Para alguns, fazer greve é coerente com a defesa das condições mínimas que permitem cuidar, escutar e pensar. Para outros, manter os atendimentos é uma forma de sustentar o espaço psíquico, num tempo de ruptura. Ambas as posições exigem reflexão ética e responsabilidade, desde que não sejam vividas como automatismos, nem como negação do impacto social em curso.O mais importante é que o psicanalista não se coloque fora do mundo que escuta. A neutralidade não é indiferença. A escuta clínica é também uma escuta do tempo histórico.Psicanalistas também trabalham — e também adoecemImporta sublinhar algo que nem sempre é evidente: psicanalistas e psicólogos são também trabalhadores. Também eles são afectados pela precarização, pelo aumento de exigências administrativas, pela instabilidade institucional, pela desvalorização simbólica do cuidado e da escuta. O desgaste físico e mental que atravessa outros sectores não lhes é alheio. A prova disso são os assustadores números do recente estudo da Organização Mundial de Saúde (O.M.S) sobre a saúde mental dos médicos e enfermeiros, o maior estudo realizado pela O.M.S., que revela que Portugal apresenta uma prevalência de depressão dos profissionais de saúde de 44%. O estudo concluiu também que um em cada três médicos e enfermeiros reportaram depressão, e um em cada 10 têm pensamentos suicidas passivos, bem como 84% dos profissionais de saúde portugueses foram expostos a um tipo de violência no local de trabalho.Reconhecer-se enquanto trabalhador não diminui a função clínica; pelo contrário, reforça a responsabilidade ética de pensar as condições que tornam possível o próprio acto analítico. Uma clínica exercida em permanente estado de exaustão corre o risco de se empobrecer, de perder a sua função transformadora.O que a Psicanálise tem a dizer hojeNum momento em que muitos sentem que não podem aceitar mais precariedade, mais exploração, mais desgaste físico e mental, a Psicanálise lembra que o sofrimento social não é um ruído secundário — é matéria clínica e política no sentido mais profundo do termo.Ler a Greve Geral apenas como perturbação logística é empobrecer o fenómeno. Escutá-la como sintoma e como acto simbólico permite reconhecê-la enquanto expressão de um mal-estar que atravessa o colectivo e se infiltra nas histórias singulares. Talvez aí resida a contribuição mais significativa da Psicanálise: ajudar a transformar o grito em palavra e a suspensão em possibilidade de pensamento. *A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico