O 'déjà-vu' de Tarcísio
Nas eleições primárias de 2012 do Partido Republicano, o pré-candidato Mitt Romney, omitiu, enquanto pôde, uma nódoa do seu passado. Até Newt Gingrich, o seu mais aguerrido rival na corrida republicana a um lugar como concorrente de Barack Obama nas presidenciais do fim daquele ano, o expor publicamente aos olhos do mundo. Aqui vai a bomba: na juventude, Romney aprendeu a falar francês.
Num tempo de antena ao som de acordeão, para a audiência ser transportada para uma Paris cheia de franceses de boina, lenço e camisas às riscas, o narrador pago por Gingrich lembrava que a Romney não lhe bastava ser “um moderado do Massachusetts adepto de assistência médica gratuita”, como era ainda “um elitista liberal cobarde ao jeito europeu”.
A fechar, o golpe de misericórdia: um vídeo de promoção aos Jogos Olímpicos de Inverno de 2002, em Salt Lake City, em que o próprio, “elitista liberal cobarde ao jeito europeu”, que nos Anos 60 circulou por Bordéus e Paris como missionário mórmon, aparece a dizer: “Bonjour, je m’appelle Mitt Romney.”
Desmascarado, Romney embruteceu-se de propósito um bocadinho, repetindo arroubos patrioteiros e citações neocon, e lá conseguiu a nomeação, apesar de Gingrich ter conseguido horrorizar uma generosa parcela de republicanos, os mesmos que, grosso modo, na eleição de quatro anos depois votariam em Donald Trump.
Na versão brasileira deste teatro do absurdo, Jair Bolsonaro faz o papel de Trump, rodeado de caipiras tão bovinos como os rednecks americanos, e Tarcísio de Freitas, candidato a candidato da extrema-direita contra Lula da Silva em 2026, interpreta uma espécie de Romney tropical.
Para entender a ascensão repentina e surpreendente de Tarcísio no campo da “direita psiquiátrica”, é bom lembrar que o Governo Bolsonaro tinha na Educação, um analfabeto, no Ambiente, um desmatador, na Cultura, um ignorante, na Saúde, um general negacionista, no Combate ao Racismo, um racista, e na Casa Civil, um militar. Como qualquer vesgo em terra de cegos, Tarcísio, engenheiro de formação, sobressaiu na pasta da Infraestrutura.
Foi, por isso, o escolhido de Bolsonaro para concorrer ao cobiçadíssimo Governo de São Paulo - e ganhou.
Tarcísio, no entanto, mesmo não falando francês tem, como Romney, uma nódoa no passado: trabalhou para Dilma Rousseff. E outra no presente: aperta a mão de Lula em eventos, chega a abraçá-lo quando fecha parcerias entre os governos federal e estadual e - heresia das heresias - não resiste a rir-se das piadas do presidente em público.
Para esconder essas manchas e agradar com urgência aos caipiras bovinos, o suposto herdeiro dos votos do inelegível Bolsonaro teve de ir a correr à manifestação do ex-presidente na Avenida Paulista posar ao lado de um aldrabão evangélico e, depois, a Telavive para se fotografar ao lado de Bibi, criticado dias antes por Lula.
Pelo meio, respondeu “podem ir queixar-se à ONU, podem ir à Liga da Justiça, ao raio que o parta, que eu não ‘tô nem aí’”, quando confrontado com o aumento de 427% nas mortes, na região da Baixada Santista, causadas pela polícia paulista, que mata suspeitos, que mata inocentes e que, no último sábado, matou até um polícia de folga.
Tarcísio embruteceu-se de propósito um bocadinho porque a política do Brasil, no fundo, é uma cópia da americana, com uns anos de atraso. É um déjà-vu, como diria Romney.