O computador renascido, fábula otimista

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Passei um dia inteiro a restaurar ligações (telemóvel, telefone fixo, computador, internet), com a ajuda, vá lá, da operadora, e dei-me conta da total dependência em que tinha ficado, como um recém nascido humano que não tem as capacidades dos recém nascidos das outras espécies e precisa mais tempo da proteção dos adultos.

Todos os números de telefone necessários e conhecidos, todas as informações pertinentes sobre a minha vida, o meu trabalho e as minhas finanças, deixaram de repente de me ser acessíveis. Eu já sei que, assim como não existe o Pai Natal, a “nuvem” situa-se materialmente no interior de um gigantesco centro de dados, onde só a rede nos pode introduzir. Mas nenhum disco externo nos pode defender de um apagão.

O apagão tornou-se, portanto, na maior vulnerabilidade das nossas sociedades, tornando os ciberataques cada vez mais mortíferos e terríveis. Depois de sair deste pesadelo informático (que não durou assim tanto tempo, mas não, não vos digo qual é a minha operadora) entendi que vivia num mundo assente não em pés de barro, mas em bancos de dados.

Embora alguns pretendam que passámos a viver só de serviços imateriais, alguém tem de construir estes bancos de dados, alguém tem que ligar estas redes. Como alguém tem que varrer as ruas, tratar dos campos e vender-nos a comida, mesmo durante a pandemia, por alguns passada em teletrabalho de serviços imateriais.

E continuamos. A nossa obrigação, ensinou-me Sartre, é entender o nosso tempo para o poder criticar. Mas cada vez mais se nos torna difícil distinguir os falsos ídolos da tribo, que parecem trazer consigo a clara evidência do que tem que ser.

Se a Humanidade tivesse seguido esses falsos ídolos do que “tem que ser, não há alternativa”, estaríamos ainda a discutir as vantagens da pedra polida sobre a pedra lascada. Com uma só evidência de base: qualquer uma destas pedras é letal, se for aplicada com a máxima força sobre o crânio de um indivíduo.

Discutir se é o ciberataque ou o ataque nuclear o mais destruidor da espécie humana torna-se uma discussão tão vazia como aquela questão das pedras. Convinha-nos que a Humanidade sobrevivesse, mesmo que essa sobrevivência se fizesse à custa de alguns ideais imperiais de potência, que repousam no lado mais primitivo do nosso cérebro. Convinha-nos a nós, humanos, é só um dizer, pode ser que poderes mais fortes e transhumanos se levantem para nos destruir ou pode ser simplesmente que nós caminhemos para o abismo com a alegre inconsciência disso e não exista nenhuma cabala da natureza contra nós, somos apenas nós que somos fiéis à nossa natureza, como o escorpião que vai à boleia da rã.

Mas enfim, escapei do apagão informático, como a Humanidade vai escapar desse sinistro fantasma do transhumano, alguma coisa entre Frankenstein e Nietzsche, que é o sonho dos milionários da rede. A Humanidade tem escapado sempre, o preço às vezes é que tem sido demasiado cruel em mortes e guerras.

Eu tinha prometido escrever hoje um texto otimista de verdade. Peço desculpa a quem mo pediu de não saber cumprir essa promessa.

Diplomata e escritor

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