O combate aos incêndios florestais como um desígnio nacional

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Como Engenheiro, Investigador e Professor Universitário em áreas de interface com os incêndios florestais, considerei meu dever dedicar-me a esta problemática que assola agressivamente o nosso território com os prejuízos e consequências dramáticas que todos conhecemos e se têm vido a agravar de ano para ano. Naturalmente que considerei, igualmente, meu dever divulgar à comunidade científica assim como ao público em geral as conclusões e as reflexões dos estudos que fui fazendo.

Assim, em 2004 publiquei um primeiro artigo no jornal Público [1] em que refletia sobre os incêndios ocorridos em 2003 e modos de os evitar. Em 2006 publiquei um artigo no International Journal of Environmental Studies [2], muito mais fundamentado com uma análise detalhada dos incêndios florestais nacionais, suas causas e propostas de intervenção. Este artigo tem sido recorrentemente citado e levou ao desenvolvimento de uma colaboração científica com o Instituto Geográfico Jovan Cvijic, de Belgrado, que resultou na análise das causas de inúmeros incêndios florestais que têm assolado a região Mediterrânea e o estabelecimento de correlações que apontam para que muitos destes incêndios possam ter tido origem em fenómenos relacionados com partículas de alta temperatura arrastadas por ventos solares. Esta investigação decorreu entre 2008 e 2017 e resultou na publicação de livros internacionais [3-4], capítulos de livros [5-7] e diversos artigos internacionais [8-10], pelo que se pode considerar que a comunicação de ciência daqui resultante foi intensa. Paralelamente, foi desenvolvida ainda alguma investigação sobre superabsorventes que são substâncias que podem ser utilizadas com eficácia no combate aos incêndios florestais com água [11-12] e, ainda, desenvolvido um projeto de investigação financiado pela Fundação da Ciência e Tecnologia, ao abrigo do programa de combate aos incêndios florestais PCIF [13] sobre a incorporação de óleos residuais provenientes de biomassa para produção de energia de base renovável.

É, infelizmente, notório que o problema continua a ser recorrente em Portugal, ano após ano, com grandes aumentos anuais das áreas ardidas e consequências que só virão a ser fortemente agravadas com o decorrer dos anos e a par do agravar das alterações climáticas que têm vindo a assolar as regiões mediterrâneas e, particularmente, Portugal, como aconteceu neste ano de 2025 que, provavelmente, foi o pior ano até agora, mas tenderá a ser melhor do que o próximo ano de 2026, mesmo não sendo demasiado pessimista.

Vale a pena referir, de novo, o que listei em 2006, como as causas dos incêndios florestais em Portugal, sendo que estas são múltiplas e estruturais:

i) a floresta portuguesa é, maioritariamente, baseada em monocultura de pinho e de eucalipto que são espécies altamente combustíveis devido à presença de óleos essenciais na sua composição em vez das espécies autóctones carvalho (quercus) sobreiro (quercus suber) e azinheira (quercus ilex);

ii) muitas das áreas rurais e florestais de Portugal estão muito desertificadas devido a migrações populacionais para as grandes cidades do litoral que ocorreram a partir dos anos 50 do século XX, e as políticas de desenvolvimento rurais não irão reverter esta tendência em breve. Isto contribui para 3 efeitos fundamentais relacionados com vulnerabilidade ao fogo: a) consideráveis extensões de terra utilizados anteriormente para agricultura não-intensiva são agora cobertos de matas e floresta densa; b) os resíduos das matas e das florestas não são consumidos como madeira para fins de aquecimento; c) a linha inicial de prevenção, que era formada principalmente por habitantes das aldeias não existe mais e não foi substituída por recursos mais eficientes que possam ser ativos na prevenção, monitorização e intervenção rápida;

iii) o estado é proprietário de apenas cerca de 3% da floresta portuguesa, e mais de 12% não tem proprietários conhecidos e, em consequência, não está sujeita a nenhum sistema eficiente de gestão. Além disso, cerca de 85% pertence a cerca de meio milhão de proprietários com uma dimensão média de 5 ha, sendo que esta enorme área está muito fragmentada em pequenas parcelas, o que impede a tomada de medidas de gestão coerentes e eficazes. Isto poderia ser parcialmente resolvido pela associação florestal, o que é contrário à cultura rural portuguesa, principalmente nas zonas norte do país;

iv) o número de profissionais dedicados à floresta é muito limitado e os departamentos do estado relevantes têm sofrido de uma crónica falta de recursos, tanto humanos como materiais. Além disso, não existem estruturas unificadas de comando nem canais de comunicação e meios conjuntos de atuação entre diversas brigadas de combate. Isto leva, obviamente, a limitações em termos da contenção de incêndios e logísticas eficazes que fazem com que os incêndios durem mais do que um ou vários dias;

v) a legislação portuguesa define que a limpeza das florestas e dos resíduos das matas seja feitas pelos seus proprietários a uma distância mínima de 50 m á volta das habitações e 100 m á volta de instalações industriais e aglomerações urbanas. Apesar de recentes melhorias no seu cumprimento, esta legislação continua a não ser cumprida na íntegra, e a verificação da responsabilidade do seu cumprimento continua a ser diluída entre os múltiplos agentes públicos, pelo que a impunidade resultante, em termos de responsabilidade, é um fator acrescido de risco, tendo-se que muitos proprietários dificilmente aderem à medida por falta de recursos económicos e por não verem retorno na medida;

vi) a política estatal tem vindo a ser dirigida para a crescente capacidade de combate a incêndios em vez da prevenção, programas educacionais e redução do uso de combustíveis em atividades florestais, além dos muitos interesses económicos associados às atividades de combate a incêndios;

vii) continua a haver uma falta generalizada de formação sobre o combate a incêndios. Tem sido adquirido conhecimento nos últimos anos, mas não tem sido feita transferência de tecnologia relativamente a desenvolvimentos recentes que têm ocorrido no estrangeiro, principalmente novas técnicas de contenção e combate a incêndios;

viii) o crime de fogo posto continua a ser fracamente penalizado. Este crime tem, tipicamente, duas origens: a) piromaníacos que se manifestam excitados pela atenção emocional dada pelos meios de comunicação social aos incêndios florestais, e b) para ganhos pessoais e económicos. Torna-se necessário aumentar e flexibilizar o quadro penal e garantir o cumprimento das penas;

ix) a negligência é frequentemente pouco penalizada. Continua a haver incêndios graves resultantes de fogos não controlados da preparação de terrenos para agricultura, pastorícia e queimadas de resíduos, assim como de fósforos e cigarros mal extintos.

Além destas razões estruturais, existem ainda outros aspetos situacionais que são recorrentes:

x) a Primavera caracteriza-se, geralmente, por chuvas fortes, como aumento da carga térmica de mato, particularmente vegetação herbácea que cresce em consequência e que atua como fontes de ignição de incêndios;

xi) os Verões são muito secos e muito quentes, particularmente nas regiões do interior, com ondas calor muito fortes entre julho e setembro, em que a temperatura do ar ultrapassa os 30-40 ºC, e com humidades do ar muitíssimo baixas;

xii) condições topográficas adversas localizadas nos locais mais desfavoráveis, criando efeitos “de chaminé” e o alastramento subsequente dos incêndios;

xiii) ano após ano, particularmente após os insucessos ao combate verificados no ano anterior, são adotados novos esquemas de coordenação da prevenção e do combate não suficientemente testados e que tem vindo a falhar em ocasiões críticas.

Acresce a isto a ausência de meios de prevenção, mas, particularmente, de combate, próprios do estado: todos os anos, perto da chamada “época anual de incêndios”, os organismos do estado alugam meios aéreos (aviões e helicópteros), assim como mecânicos, e acabam por recorrer à contratação de pessoal externo e/ou à ajuda internacional, que se verifica ser necessária, geralmente, quando é tarde de mais.

De tudo isto, e enquanto não se efetivam reformas estruturais, que necessitam de um pacto de regime, estou crente que o que é necessário é que o estado português assuma esta importante questão como um “Desígnio Nacional”, e não como uma fatalidade sazonal. Na realidade, a floresta portuguesa é um importantíssimo e (devia ser) inalienável recurso natural nacional e, para que se consiga a sua preservação num cenário cada vez mais preocupante de alterações climática adversas, o estado tem que assumir ele próprio a prevenção, a monitorização e o combate aos incêndios, a ser feito durante todo o ano e com elevada regularidade e frequência. O estado tem, assim, que passar a dispor de corpos próprios de prevenção e monitorização (eventualmente, baseados no modelo dos guardas florestais) de base local e regional; corpos profissionais de combate com implantação regional, em vez de recorrer quase exclusivamente aos corpos de voluntários cuja ação deverá continuar e ser integrada com esta, assim como meios próprios (em vez de subcontratados) de combate aéreo e mecânico, além de uma estrutura coesa e atuante durante todo o ano que coordene prevenção e combate, e das necessárias alterações legislativas e penais relativas à posse e expropriação de terrenos, penalização de incendiários e da negligência. Se bem que tal ocorreu num cenário climatológico menos adverso, há que reconhecer que este problema praticamente só passou a tomar esta magnitude quando o estado português “privatizou” o combate aos incêndios, o que ocorreu na década de 80 do século passado. Naturalmente que os investimentos estatais inerentes são avultados, mas para isso Portugal poderá certamente recorrer a fundos europeus adequados e encarar estes investimentos como investimento em defesa nacional, uma vez que se está a proteger um recurso nacional, que não se poderá proteger de outra forma.

Referências:

[1] Gomes, J., Artigo de opinião publicado no jornal Público em 13/5/2004: “Incêndios florestais em Portugal: como evitá-los”. Disponível em: https://www.publico.pt/2004/05/13/jornal/incendios-florestais-em-portugal-como-evitalos-188178

[2] Gomes, J., “Forest Fires in Portugal: How it happened and why it happened”, International Journal of Environmental Studies, 63(2), 109/119 (2006) - DOI: 10.1080/00207230500435304

[3] Radovanovic, M., Gomes, J., “СУНЧЕВА АКТИВНОСТ И ШУМСКИ ПОЖАРИ“ (“Solar activity and forest fires”), Ed. Geographical Institute Jovan Cvijic, Serbian Academy of Sciences and Arts, Belgrade, 2008, 163 pp. – ISBN 978-86-80029-40-5

[4] Radovanovic, M., Gomes, J., “Solar activity and forest fires”, Nova Publishers Inc. Eds., New York, 2009, 131 pp. – ISBN 978-1-60741-002-7

[5] Gomes, J.; Radovanovic, M., “Solar activity as a possible cause of large forest fires – A case study: analysis of the Portuguese forest fires”, Science of Total Environment, 394(1), 197/205 (2008) - DOI:10.1016/j.scitotenv.2008.01.040

[6] Radovanovic, M., Milovanovic, B., Gomes, J., “Endangerment of undeveloped areas of Serbia by forest fires”, Journal of the Geographical Institute “Jovan Cvijic”, 59(2), 17-35 (2009) - DOI: 10.2298/IJGI0902017R

[7] Radovanovic, M., Gomes, J., “On the relationship between solar activity and forest fires”, in “Handbook on Solar Wind: Effects, Dynamics and Interactions”, Johannson, H.E. Editor, Nova Publishers Inc. Eds., New York, 2009 – ISBN 978-1-60692-572-0

[8] Gomes, J., Mukherjee, S., Radovanovic, M., Milovanovic, B., Popovic, L., Kpvacevic, A., “Possible Impact of the Astronomical Aspects on the Cyclonic Motions in the Earth’s Atmosphere”, in “Solar Wind: Emissions, Technologies and Impacts”, Borrega, C., Cruz, A. Editors, Nova Publishers Inc., New York, 2012 – ISBN 978-1-62081-979-1

[9] Radovanovic, M., Gomes, J., “Wildfire in Deliblatska Pescara (Serbia) – Case analysis of July 24th 2007”, in “Forest Fires: Detection, Suppression and Prevention”, Gomes, E., Alvarez, K. Editors, Nova Publishers Inc. Eds., New York, 2009 – ISBN 978-1-60741-716-3

[10] Radovanovic, M., Gomes, J., Yamashkin, A., Milenkovic, M., Stevancevic, M., “Electrons of protons: What is the cause of forest fires in western Europe on June 18, 2017?”, Journal of the Geographical Institute “Jovan Cvijic”, 67(2), 213-218 (2017) - DOI: 10.2298/IJGI17022138

[11] Bordado, J., Gomes, J., “New technologies for effective fire fighting”, International Journal of Environmental Studies, 64(2), 243-251 (2007) - DOI: 10.1080/00207230701240578

[12] Bordado, J., Gomes, J., “Use of super absorbents for forest fire fighting”, in “Forest Fires: Detection, Suppression and Prevention”, Gomes, E., Alvarez, K. Editors, Nova Publishers Inc. Eds., New York, 2009 – ISBN 978-1-60741-716-3

[13] Gomes, J., Puna, J., Marques, A., Gominho, J., Lourenço, A., Galhano, R., Ozkan, S., “Clean Forest – Project concept and early results”, Energies, 15, 9294 (2022) - DOI: 10.3390/en15249294

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