O Chega, afinal, policia a linguagem?

Publicado a
Atualizado a

Fui ontem à tarde ao site do partido "Chega" para ver se estava lá o novo programa político da formação, aprovado no último fim de semana, a tentar perceber a ideia da prisão perpétua e do cadastro étnico-racial, ou lá o que é. Não estava...

Em compensação reparei que alguém lá no partido é muito competente a fazer "copy-paste" desta frase: "A Comissão de Ética informa que, ao abrigo da Diretiva n.º 3/2020 e do Regulamento Disciplinar, foi aprovada a suspensão provisória do militante (....) por um período de (....) dias".

O funcionário do partido responsável por esta operação só tem de escrever, no sítio onde coloquei os parenteses, o nome do militante do Chega que é castigado e o número de dias de suspensão que ele tem de cumprir.

Navegando pelo site, no separador intitulado "Disciplina", encontrei esta informação repetida 61 vezes, correspondendo a 61 militantes suspensos.

Alguns deles têm um acrescento ao texto inicial: "e vai ser proposta a sua expulsão ao Conselho de Jurisdição". Também é adicionado um parágrafo com algumas informações suplementares, normalmente um aviso a dizer que a sanção inclui a suspensão de cargos e a capacidade eletiva e de eleitor dentro do partido.

Além destes 61 militantes que desde novembro passado foram postos de castigo, há ainda outros quatro que foram suspensos com base no artigo 21 e outros que foram suspensos com base na já referida Diretiva nº3/2020, mas sem o número de dias de suspensão "provisória" definidos. Temos, portanto, a exibição pública de 65 castigados.

Fui depois ver o que diz a Diretiva nº 3/2020. Ela determina a suspensão mínima por 30 dias dos militantes ou dirigentes que façam "referência ofensiva a membros ou dirigentes do partido, seja em que contexto for, incluindo de defesa pessoal ou de terceiros" bem como aos que "lancem sobre outros membros do partido ataques, diretos ou subtis, à sua honra e ao seu bom nome, independentemente do contexto em que o façam". A reincidência pode levar à expulsão.

Não satisfeita com estas hipóteses, a Diretiva ameaça também os militantes "que publiquem, na imprensa ou nas redes sociais, episódios ou narrativas sobre a vida interna do partido" ou outras intervenções que tenham "como efeito menosprezar ou diminuir a dignidade dos órgãos do partido, sejam os órgãos nacionais, distritais ou locais".

O texto alerta ainda que "a presente diretiva terá em consideração não apenas as publicações feitas em páginas públicas ou políticas, mas as páginas de perfis pessoais, grupos públicos e grupos de conversação interna".

Um comunicado de 22 de junho da Comissão de Ética do Chega, assinado por Rui Paulo Sousa, promete: "vamos passar a analisar todos as publicações ou comentários, efetuados por militantes, estruturas Concelhias ou Distritais que visem denegrir ou atentar contra o bom nome e imagem dos nossos candidatos autárquicos após os mesmos serem confirmados pela Direção Nacional e pelo Presidente do Partido, e agir em conformidade se necessário"... Nem o Zuckerberg promete tanta dedicação na censura a posts do Facebook!

O Chega anda, portanto, a castigar a má-língua no partido com notável empenho: desde março conto a frenética média de 12 militantes suspensos por mês.

Ninguém é obrigado a ser militante do Chega, pelo que me é indiferente como é que o partido rege a sua disciplina interna - é lá com eles.

O que já tem a ver com todos nós (por serem comportamentos que extravasam a vida interna dessa organização de conquista do poder e passam para a sociedade que um dia pode ter o Chega no poder) é ver pessoas, desta crença, ululantes nas redes sociais, a queixarem-se permanentemente do "politicamente correto" que lhes tolhe "a liberdade de expressão", subscreverem, ao mesmo tempo, este regulamento ridiculamente opressivo e limitador da dita liberdade de expressão... Não percebem a incoerência?!

E espanta-me que o inventor deste regulamento de policiamento da linguagem e também líder do partido, André Ventura, seja o mesmo homem que, depois de condenado em tribunal por chamar "bandidos" a pessoas que não o são, diga, à imprensa, qual anarquista engravatado, que não aceita tal decisão usando estes termos: "nunca deixarei de dizer que são bandidos".

É a tentativa de regresso da liberdade só para quem pode e para quem manda... dantes chamavam-lhe ditadura.

Jornalista

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt