O “Capital 3.0” na era da Inteligência Artificial

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Quando Thomas Piketty publicou em 2013 O Capital no Século XXI, 146 anos depois do Capital de Karl Marx, trouxe de volta a questão da desigualdade. A sua tese era que a concentração de riqueza é estrutural no capitalismo e que a resposta deveria ser fiscal, com impostos progressivos sobre património, rendimentos elevados e heranças. A proposta parecia convincente há uns anos, contudo na era da inteligência artificial tornou-se incompleta e desatualizada.

O capital de hoje não se mede apenas em imóveis, fábricas ou ações. A verdadeira fonte de poder está em intangíveis, como dados, algoritmos e capacidade de computação. A riqueza já não depende da posse de terras ou máquinas, mas da apropriação de fluxos de informação e do controlo da infraestrutura digital que processa milhões de interações por segundo. As grandes tecnológicas acumulam valor porque conseguem transformar dados em previsões, previsões em consumo e consumo em lucro.

Esta lógica assenta numa concentração sem precedentes de capital, de poder de computação e de poder de decisão. Quanto mais se concentra a capacidade de treinar modelos, mais se concentra a riqueza, o poder político e a captura de instituições por estes interesses.

É aqui que a proposta de Piketty revela os seus limites. Como tributar o valor de um modelo de linguagem treinado sobre biliões de textos, na maioria criados gratuitamente por utilizadores? Como medir o património de uma plataforma que vale não pelo que possui, mas pelo que sabe? A lógica fiscal tradicional é demasiado lenta para acompanhar uma economia movida por algoritmos e demasiado estreita para captar a nova forma de acumulação.

O trabalho também mudou de natureza. Marx via a mais valia nas fábricas de Manchester e hoje encontra-se na exploração invisível das interações digitais. Cada pesquisa online, cada fotografia, cada trajeto registado por um telemóvel gera valor para outrem. Ao mesmo tempo, milhões de trabalhadores enfrentam a substituição por sistemas automáticos ou a precarização das suas tarefas.

As instituições políticas e jurídicas continuam ancoradas num mundo pré-digital. Parlamentos, reguladores e sistemas fiscais foram concebidos para lidar com propriedade tangível, empresas industriais e fluxos de capitais clássicos. Revelam-se desadequadas perante conglomerados que operam globalmente, dominam dados e escapam aos controlos fronteiriços. A democracia parece lenta e incapaz de responder à velocidade do capital algorítmico.

É neste vazio que emerge o “tecno-feudalismo”, em que as plataformas digitais funcionam como senhores feudais modernos, cobrando rendas pelo acesso a serviços, controlando territórios virtuais e reduzindo cidadãos a vassalos que produzem valor sem contrapartida justa. A concentração de poder deixa de ser apenas económica e torna-se quase soberana, capaz de moldar comportamentos, influenciar debates e até condicionar a autonomia dos próprios Estados.

Será que basta redistribuir a riqueza acumulada ou não será mais urgente interrogar como ela é gerada e quem a controla? Se os dados são produzidos coletivamente, não deveriam ser tratados como bem comum? Se a inteligência artificial assenta em trabalho humano, direto ou disfarçado, poderá o valor ser legitimamente apropriado de forma privada? Tal como a energia ou a água, não deveria a IA ser regulada como infraestrutura crítica, sujeita a transparência e partilha?

A era da IA mostra a plasticidade do capital, que se adapta, se desloca e se reinventa em tempo real. O conflito entre acumulação privada e interesse coletivo reaparece agora inscrito em código, algoritmos e redes globais. A questão não é apenas se a desigualdade irá aumentar, mas se a própria democracia resistirá a ser moldada por sistemas que não controlamos.

Especialista em governação eletrónica

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