O campeonato no Qatar e a final em Moscovo
Escrever sem mencionar o Campeonato Mundial de Futebol, que se iniciou esta semana no Qatar, poderia ser visto como pedante. Nessa armadilha, não quero cair. Assim, do que se passou até agora, saliento a coragem da seleção iraniana, que permaneceu em silêncio, sem o cantar, quando o seu hino nacional foi tocado. Essa atitude foi extraordinária. Marcou de modo expressivo o apoio dos jogadores ao povo do seu país, que está há semanas nas ruas a desafiar o poder medieval dos clérigos xiitas e a lutar pela liberdade e a igualdade no tratamento de todos, homens e mulheres. Não se trata de misturar futebol com política. Há outros, no topo de Estado, a fazê-lo. É, sim, lembrar que os direitos humanos devem estar acima de tudo. Sempre que se fizer política nessa base, ao nível doméstico e internacional, o mundo será muito diferente, mais harmonioso e benevolente. E menos cínico, no campo político.
O espetáculo que decorre no Qatar serve para nos recordar três factos maiores. Primeiro, a diversidade das nações do globo. A cultura de cada uma delas deve ser respeitada e apreciada. Temos sempre a possibilidade de aprender algo com os outros. E não há lugar para o racismo, nem no desporto nem na vida quotidiana. Segundo, há rios de dinheiro em torno do futebol. Já não falo dos milhares de milhões gastos pelo país anfitrião. Menciono, apenas, que as grandes seleções de futebol estão no hemisfério norte: dos 32 participantes no torneio, cerca de 22 provêm dos países mais ricos. O jogo é praticado em quase todos os cantos do mundo, as grandes estrelas são conhecidas por toda a parte, mas sem recursos não há vitórias, sem moeda sonante os clubes e as seleções não passam da cepa torta. Terceiro, o futebol faz reviver os nacionalismos primários, o vale tudo desde que se ganhe, incluindo a bênção da mão de Deus, na célebre versão de Maradona. Não é o melhor que deve ganhar, mas sim a minha seleção. Isso não é desporto, é a cegueira do vale tudo, de velinha acesa e fé em Deus.
Por falar em velinhas, lembro que os militares de Vladimir Putin estão a tentar reduzir a Ucrânia a um país que deverá passar o inverno à luz das candeias. Essa é a tática russa para os meses do frio: uma rendição da Ucrânia com base no sofrimento dos ucranianos, em casas geladas e sem água, em empresas paradas, em hospitais arrasados. Por isso fazem criminosamente chover dia e noite sobre a Ucrânia dezenas de mísseis e de drones que visam destruir a infraestrutura elétrica do país. Já conseguiram desmantelar o sistema de abastecimento de água em Kyiv. Estes são crimes contra as populações civis, muito próximos da figura jurídica do genocídio. Os comentadores que não denunciem essas práticas, são, no meu modo de ver, cúmplices desses crimes.
Mas a tática russa poderá não resultar. Não há nenhum indício visível de negociações e quem fala de um ultimato russo deve ser frequentador habitual das ruas do desvario. É verdade que a Rússia dá sinais de querer negociar, não só por estar a perder no terreno, mas também por causa do isolamento diplomático que a guerra lhe tem provocado. Mas não quer aceitar a única possibilidade de acabar com a guerra: uma retirada negociada dos territórios ocupados.
Do lado ucraniano, a resposta política foi transmitida ao G20 pelo presidente Zelensky. E a resposta militar assenta em dois grandes pilares: no reforço da defesa antiaérea e na preparação e contínua projeção de vários grupos de operações especiais. Estes grupos funcionam como pontas de lança, capazes de se infiltrar para lá da margem leste do rio Dnipro, para além de Kherson e no Donbass, de se aproximar das zonas costeiras do mar de Azov, da Crimeia inclusive. Deverão causar grandes estragos e debandadas às massas de recrutas russos, que não têm experiência de guerra e que pelo seu número e necessidades logísticas são um alvo relativamente fácil de identificar. O objetivo é atingir o moral russo. Uma vez tal conseguido, tudo pode acontecer, ou no Kremlin ou à mesa das negociações. Mas, sobretudo no Kremlin. Sem comparações com Doha, a verdade é que ainda não se sabe como nem quando terminará o embate.
Conselheiro em segurança internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU