O Brasil era feliz e não sabia

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O metro de São Paulo, ou metrô, com acento circunflexo, tem seis linhas, 91 estações e movimenta quatro milhões de paulistanos apressados todos os dias úteis, enlatados e entalados como sardinhas, no stress apressado da hora de ponta e expostos a diversas formas de poluição.

E, no entanto, um utilizador diário do metrô na hora de ponta, que todos os dias da semana odiava sentir-se enlatado e entalado entre desconhecidos apressados e exposto a todas as poluições do mundo, desabafou um dia num noticiário matinal da TV Globo: “Ai que saudades do meu metrô, eu era feliz e não sabia...”

Estávamos em 2020 e o cidadão, confinado há dias ao seu apartamento por culpa da pandemia, dava tudo por voltar a sentir um stresszinho e uma poluiçãozinha.

Os mais católicos são lembrados, a cada missa, que “é justo e necessário, é nosso dever e salvação, dar-vos graças sempre e em todo o lugar”, ou seja, que devem, mesmo enlatados e entalados no metrô, ser gratos. Já os mais céticos preferem o adágio inglês “não há nada tão mau que não possa piorar”.

Colunistas e editorialistas de jornais, militantes de partidos de centro-esquerda e de centro-direita, uns mais católicos, outros mais céticos, devem ter sentido que “não há nada tão mau que não possa piorar” ou que “é justo e necessário, é nosso dever e salvação, dar-vos graças sempre e em todo o lugar” quando no último 24 de junho viram Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso (FHC) juntos num encontro em São Paulo.

Em 1978, tinha Lula 33 anos e FHC 48, o primeiro, ainda só um carismático líder sindical, distribuiu à porta das fábricas panfletos do segundo, um respeitado intelectual, sociólogo e académico que concorria por aquela altura ao Senado.

Mas, em 1980, Lula fundou o Partido dos Trabalhadores (PT) e, em 1988, FHC saiu do MDB para criar o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB). Dava-se início, a sério, ao processo de redemocratização brasileira.

FHC venceu Lula à primeira volta em duas eleições seguidas, 1994 e 1998, mas o ex-sindicalista bateu os sucessores do ex-académico, José Serra e Geraldo Alckmin, em 2002 e 2006. E a sucessora dele, Dilma Rousseff, ganhou depois a Serra e Aécio Neves, em 2010 e 2014, sempre com recurso a disputadas segundas voltas.

O PT e o PSDB tornaram-se então a tese e a antítese um do outro, o Fla e o Flu da política, usando o adversário como combustível e alimento para animar as próprias hostes. Lula condenou, injustamente, a herança económica deixada por FHC e FHC criticou, imerecidamente, os programas sociais do Governo de Lula, enquanto dirigentes, de um e de outro partido, se ofendiam, se atacavam, se radicalizavam. Neste cenário, naturalmente, FHC e Lula afastaram-se.

Em 2018, porém, o fenómeno Jair Bolsonaro, expressão local da extrema-direita mundial, levou ao desaparecimento eleitoral do PSDB, que passou de quase 50% para menos de 5% em quatro anos. E na segunda volta de 2022, FHC, face à ameaça de mais quatro anos da estupidocracia bolsonarista, apoiou Lula. Inequivocamente.

Porque, por mais que o velho rival tenha fundado um partido que se tornou a némesis do seu, por mais que ambos tenham disputado duas ferozes eleições diretas e, depois, mais quatro indiretas, FHC, com a lucidez de um nonagenário, entendeu que naquele período da redemocratização, ele, Lula e o Brasil eram felizes. Só não sabiam.

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