O BI do Imóvel já tem barbas

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Luís Montenegro anunciou no domingo passado a criação do “BI do imóvel” como uma das novas medidas para a habitação. Para muitos, soou a novidade tecnológica com promessa de eficiência. Para outros, sobretudo quem acompanha há décadas o debate sobre a modernização administrativa em Portugal, tratou-se de um déjà vu.

É que a ideia do Bilhete de Identidade do Imóvel não nasceu agora. Já em 2007, a Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação (APDSI) apresentou, no estudo “Casa na Hora”, a proposta de criar um Número de Identificação Predial único, associado a um “dossier electrónico do imóvel”, interoperável entre Finanças, Registos, Câmaras Municipais, bancos e notários. A ideia era acabar com a peregrinação burocrática entre balcões, reduzir prazos e custos e dar ao cidadão um ponto único de contacto no processo de compra de casa.

Na altura, os constrangimentos estavam identificados, com sistemas que não comunicavam entre si, conceitos jurídicos diferentes para o mesmo “prédio”, arquivos em papel, redundância de certidões e uma teia de passos que tornava um direito básico numa via sacra. A solução também estava desenhada, com um BI do imóvel que integrasse informação fiscal, registral, urbanística e técnica, com transparência e rastreabilidade. Não é para rir, mas uma árvore pode ser um prédio no registo predial e o Estado até há poucos anos não registava as suas propriedades.

A APDSI nunca largou esta bandeira. Em 2017, após os incêndios que devastaram o país, voltou a insistir na necessidade de um cadastro multifuncional e de uma gestão integrada da informação do território, denunciando a ausência de coordenação entre sistemas e entidades e propondo de novo um “dossier do prédio” com identificação única, fiável e interoperável.

Entretanto, Portugal ganhou apressadamente o BUPi, um “cadastro simplificado”, ao ponto de se acreditar nos polígonos desenhados pelos proprietários, sem rigor técnico nem validação adequada e à revelia da Direção-Geral do Território, enquanto autoridade nacional do cadastro. O resultado foi um avanço a meio gás, pois criou-se uma base, mas ficou-se longe da visão ambiciosa de 2007.

Chegamos a 2025 com o anúncio de Montenegro. Vale a pena recuperar boas ideias, mesmo guardadas há décadas. Mas não podemos deixar de perguntar: Quantos anos mais precisará Portugal para transformar diagnósticos repetidos em execução concreta? Quantos governos terão de anunciar e prometer outra vez o que já estava pensado e desenhado há quase uma geração?

O “BI do imóvel” pode ser mais do que um instrumento burocrático. Deve ser a peça essencial para simplificar a vida de quem compra ou vende casas, para dar transparência ao mercado imobiliário, para assegurar confiança a bancos e notários e até para proteger o território em contextos de emergência, como incêndios ou cheias. Pode também reforçar a justiça fiscal, permitindo contribuições mais justas para o financiamento público.

Mas para isso não basta a proclamação política. É necessária governação transversal e capacidade de coordenação, que ponha Finanças, Justiça, Autarquias e Ordenamento a falar a mesma língua digital. É preciso romper com a cultura da redundância e da fragmentação, assumir a interoperabilidade como princípio e tratar o “prédio” como uma entidade única, com identidade própria e informação partilhada por todos os organismos relevantes. Caso contrário, o BI do imóvel arrisca-se a ser mais uma bandeira política, daquelas que brilham no anúncio mas que se apagam no quotidiano da administração pública.

Em 2007 já sabíamos o que era preciso fazer. Em 2017 reforçou-se o alerta. Em 2025 volta-se a prometer. Talvez agora seja, finalmente, a hora de dar identidade aos nossos prédios “uma só vez” e de uma vez por todas.

Especialista em governação eletrónica

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