Um golpe militar muito peculiar, este da Guiné-Bissau, anunciado ao vivo, em diálogo com jornalistas, pelo próprio presidente derrubado, Umaro Sissoco Embaló.Sissoco é um artista. A seu crédito podemos mesmo acrescentar nos anais da Politologia a invenção do auto-golpe como recurso para sair de uma eleição perdida. Porque, com 55 mil votos contados em Bissau contra 90 mil do concorrente da oposição, Fernando Dias da Costa, tudo levava a crer que as eleições estivessem perdidas para Sissoco Embaló.Outra originalidade do golpe guineense foi o facto de os dirigentes da oposição terem sido presos de seguida. Era como se, no 25 de Abril, o MFA tivesse deixado Américo Tomás e Marcelo Caetano anunciarem pelo Times ou pelo Figaro que tinham sido derrubados, e os comunistas, os socialistas e os dissidentes da Ala Liberal tivessem sido metidos na cadeia em consequência.Mas Sissoco é mesmo um artista. Basta que nos lembremos da forma expedita como conseguiu ser recebido em Lisboa pelo Presidente da República e pelo Primeiro-Ministro, quando da eleição que ganhou e foi contestada por Domingos Simões Pereira. Foi simples: ele, ou alguém por ele, convenceu o Presidente e o Primeiro-Ministro portugueses de que iria a Paris, onde também seria recebido a alto nível. Em Lisboa, receberam-no prontamente, em Paris ninguém o recebeu; mas com isso Sissoco ganhou credibilidade e decidiu a eleição pendente na Guiné.Diz-se, e não nos custa a acreditar, que começou na política africana como Gaddafi boy, ou seja, como um dos jovens que o “Irmão Líder da Revolução”, Muammar al-Gaddafi, enviava com pastas de dinheiro vivo aos políticos da região. Daí terá vindo a popularidade e a influência política de Sissoco.O ex-presidente da Nigéria, Goodluck Jonathan, uma das vozes com autoridade moral do continente africano, foi muito claro, ao dizer em entrevista à News Central TV que não acreditava no “golpe militar” guineense, classificando-o como “um “golpe cerimonial”: “Foi o próprio presidente Embaló quem anunciou o golpe, antes mesmo de um militar vir falar ao mundo, dizendo que estavam no controlo de tudo”.A CEDEAO, organização que tinha observadores nas eleições de Domingo, 23 de Novembro, dava Fernando Dias a vencer quando já havia resultados das nove regiões do país. Porém, antes que os resultados fossem anunciados, Embaló activou os seus comparsas militares para o “golpe”.A situação continua confusa: Embaló saiu do país para o Senegal, num avião privado senegalês. Agora, foi para o Congo (Brazaville), também num avião do Presidente Sassou Nguesso. Em Bissau, a sede do PAIGC foi invadida e saqueada por militares, confirmando a singularidade de um golpe em que é a oposição ao presidente “deposto” que é vítima da violência dos golpistas.A principal preocupação neste momento deve ser garantir a vida e a integridade física dos dirigentes da oposição detidos pelos golpistas, como Domingos Simões Pereira, líder do PAIGC, e Octávio Lopes, deputado do PAIGC. Quanto a Fernando Dias, o presumível vencedor da eleição de 23 de Novembro, parece ter encontrado refúgio na embaixada da Nigéria que, em princípio, os auto-golpistas não se atreverão a violar. Mas nunca se sabe.Quanto a Portugal, que teve culpas largas no reconhecimento internacional de Sissoco, espera-se que esteja atento e não deixe de se empenhar no esclarecimento do auto-golpe, na protecção dos oposicionistas a Sissoco e na restauração da normalidade democrática e da vontade popular na Guiné. Politólogo e escritorO autor escreve de acordo com a antiga ortografia