O principal ludíbrio no debate sobre o sorteio de juízes consiste em ligar a entrada em vigor da lei à publicação da recente portaria. Não, não é correto. A lei está em vigor desde 2021 e a portaria nada vem acrescentar ao ponto que está em discussão - a obrigação do sorteio de todos os juízes nos tribunais superiores. Aliás, se alguma coisa a portaria vem aclarar é que a norma da lei que impõe o sorteio não precisava de regulamentação alguma, tratando-se, como sempre tenho defendido, de uma norma exequível por si própria. No emaranhado de enganos com que pretendem discutir este assunto este é o primeiro esclarecimento que importa fazer. A norma da lei que impõe o sorteio sempre esteve em vigor e nunca precisou de portaria alguma para entrar em vigor..O outro embuste é de antologia. Ele consiste na ideia amalucada de ligar a ausência de regulamentação ao meu interesse, ao Processo Marquês. O argumento, avançado pelo inefável presidente da Associação de Juízes, é que o governo não regulamentou a lei com o propósito oculto e inconfessável de me favorecer, permitindo-me assim apresentar vários incidentes de recusa dos juízes que não foram sorteados. O argumento é completamente falacioso. Primeiro, como é sabido, sempre critiquei o governo por não ter feito a regulamentação da lei e por se colocar na lamentável situação de ilegalidade por omissão. Segundo, e como já expliquei acima, a publicação ou não da portaria é absolutamente irrelevante para a causa em debate - a obrigação de sorteio de todos os juízes dos tribunais superiores..Todavia o aspeto mais vergonhoso do debate consiste em confundir o vício e a virtude. Vício, para o senhor presidente da Associação de Juízes, é o comportamento do advogado consciente que reclama o cumprimento da lei; virtude, para o mesmo senhor presidente, é o reiterado comportamento dos tribunais que insistem em violar a lei e não sortear os juízes. Vício, diz ele, é defender a garantia constitucional do juiz natural; virtude é continuar a escolher juízes por critérios administrativos que a nova lei expressamente proíbe; vício, segundo o senhor presidente, é lutar por respeitar a lei do Parlamento; virtude é violar o Princípio da Separação de Poderes e pretender que só existem as leis que os juízes entendem dever existir. Não, não é assim. Pelo menos, ainda não é assim. O que está em causa no debate não são nenhumas "manobras dilatórias" do Processo Marquês, mas a insuportável arrogância de um Poder Judiciário que se recusa a cumprir uma lei da Assembleia da República como se tivesse, sobre ela, direito de veto. Não tem. Não tem. Esse poder está constitucionalmente entregue ao Presidente da República. A dura verdade que fica de todo este triste debate é o conjunto dos mais de cinquenta mil processos cujos juízes não foram sorteados e estão agora ameaçados de nulidade..Também digno de nota é o silêncio das pessoas com responsabilidades no debate público das leis e do direito. Com algumas exceções, é certo. Dias atrás, por exemplo, um juiz conselheiro decidiu escrever um artigo para dizer enigmaticamente que a lei "está no reino dos vivos", mas evitando comprometer-se com o sorteio dos juízes, que é o que está em discussão. Compreendo. A questão é delicada e convida à prudência e à pusilanimidade, deixando campo aberto para o exercício mais fácil de maldizer o governo e seguir a matilha afirmando que a ausência de regulamentação "alimenta sucessivos incidentes e recursos (...) (com vista) à desejável meta da prescrição". Quanto ao debate, nada; quanto a julgar as intenções dos outros, vale tudo. É tudo o que as luminárias do Direito têm a nos dizer. É a isto que chegámos..Mas tenhamos paciência. Com alguns personagens, só a ironia permite aturar a desonestidade. Num programa de rádio muito recente, a que agora chamam de podcast, um jornalista chamava o seu convidado de "Manel", estando a referir-se ao presidente da Associação de Juízes. Este ato falhado (a emissão continuou com o jornalista corrigindo para "senhor desembargador") é bastante revelador da cumplicidade que vem de longe. Vem pelo menos do tempo em que o agora presidente era secretário-geral da mesma Associação e do tempo em que, em 2011, apresentou uma queixa-crime contra o governo socialista por gastos excessivos nos gabinetes ministeriais (o famoso caso dos cartões de crédito). O caso durou dez anos e deu origem a horas e horas de maledicência televisiva contra o governo socialista. No fim, era tudo falso. Tudo falso. Salvo erro, foram acusados dois secretários de estado (um deles, que me lembre, por ter comprado demasiados livros) e ambos foram absolvidos. Mas a manobra política resultou. Mais de dez anos depois, o ativismo político regressa, já envelhecido, é certo, mas com a malícia e a falsidade de sempre..P.S. - Parece que o jornalismo português se viu obrigado a juntar na mesma frase algumas palavrinhas que há muito estão proibidas - Sócrates ganhou um recurso. Afinal, parece que as chamadas manobras dilatórias nem são manobras, nem são dilatórias. O tribunal revogou um despacho injusto e as ruas não se incendiaram, nem a democracia ficou em perigo. Absolutamente nada - apenas a voz calma da Justiça: se foi concedido ao Ministério Público um prazo de 120 dias para recorrer, igual prazo dever ser concedido à outra parte. É isto, e só isto. Já nos tínhamos esquecido como a Justiça pode ser simples..Antigo primeiro-ministro e principal arguido no Processo Marquês