O príncipe encantado das presidenciais começa a perder brilho. O sonho de caminhar sobre uma passadeira vermelha até ao trono de Belém vai-se desvanecendo, a cada dia mais distante. Gouveia e Melo perdeu a aura. Não perdeu o discurso porque, na verdade, nunca o teve. Neste doloroso despertar do sonho, está a revelar o que sempre esteve latente: uma inquietante incoerência e uma natureza autoritária, agora expostas em ataques deselegantes contra adversários e contra o próprio sistema político — o mesmo que a Constituição consagra e protege. Com o ciclo autárquico ultrapassado, as atenções voltam-se para as presidenciais de janeiro. A larga avenida por onde Gouveia e Melo imaginava desfilar começa a estreitar-se perigosamente. O posicionamento político que tenta construir soma tantas contradições que deixa o eleitorado atónito. A pergunta repete-se, de norte a sul: afinal, quem é Gouveia e Melo? Comecemos pelas incoerências. O almirante apresentou-se como “o único candidato independente”, acusando os partidos de quererem transformar as presidenciais numa segunda volta das legislativas. Todavia, na sua própria pré-campanha, confessou ter votado PS e PSD, convocando esses mesmos partidos e respetivos eleitores para o seu campo de batalha. Sugeriu ainda que figuras como Luís Marques Mendes ou António José Seguro, por terem liderado partidos, jamais poderiam ser independentes ou imparciais. Pela sua própria lógica, seriam inelegíveis. E, no entanto, o seu modelo de presidente é Mário Soares – precisamente o símbolo maior de um partido e de uma época. A contradição alastra também à sua súbita vocação antissistema. Gouveia e Melo quis vestir o papel do outsider, do homem novo que vem de fora, puro produto do mérito e da independência. Mas a verdade é que o seu percurso recente desmente a narrativa: chegou a Chefe do Estado-Maior da Armada através do sistema vigente, beneficiando dele em toda a linha. Na tentativa de apropriar-se do estandarte do “povo contra o sistema”, embateu em André Ventura, o comandante-em-chefe dessa armada de descontentes. Em desespero, almoçou com o líder da extrema-direita para ensaiar uma aproximação, mas o encontro redundou em fracasso. Desde então, oscila entre o antissistema e o pró-imigração, num discurso errático que não convence nem os revoltados nem os moderados. Entretanto, até os pequenos nichos eleitorais de onde esperava recolher migalhas começam a desaparecer. Catarina Martins, António Filipe e Cotrim de Figueiredo sugam o pouco que sobra, subtraindo-lhe possibilidades. Perante a perda de terreno, o almirante parece agora resvalar para a sua veia autoritária — a mesma que revelou quando repreendeu publicamente os marinheiros, em cena cuidadosamente preparada para as câmaras. O ataque pessoal dirigido a Luís Marques Mendes, a quem chamou “bastonário de uma perigosa oligarquia”, traduz uma preocupante ausência de cultura democrática e de respeito pelas regras elementares do debate político. E, no fim, será isso que o afundará ainda mais nas sondagens. Mendes, por seu lado, manteve a serenidade que o caracteriza e respondeu como quem sabe que não precisa de descer ao mesmo nível: “não me vou descaracterizar, não vou andar a dizer mal de ninguém, não vou fazer campanha pela negativa”. Uma lição de contenção e de dignidade – virtudes que, ao que parece, o almirante ainda não aprendeu a navegar. Professor catedrático