Nuno Roque da Silveira. Um outro Vietname: Memórias da guerra

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Publicado em Dezembro de 2024, este segundo volume de Memórias da Guerra Colonial, com a marca da Colibri, é, sem dúvida, um modelo de memorialismo numa literatura pobre quanto a esse género. Vindo a lume numa editora que ao longo dos anos se tem caracterizado quer pela publicação de teses de doutoramento e de outros trabalhos de natureza académica, quer pela edição de livros que - como é o caso - não sendo trabalhos académicos constituem um enorme contributo para que a História e a Memória se não percam nesta época de esfacelamento do passado e, não raro, tentação de revisionismo, ao apostar nesta edição a Colibri mostra que nem sempre a aposta em verdadeiros documentos de cultura está votada ao fracasso.

Mas este livro de Nuno Roque da Silveira, ex-combatente da Guerra Colonial, na frente de Angola, para além de ser, como diz na sua breve introdução, um gesto que visa aplacar a voracidade do tempo (muitos são os veteranos que a voragem da vida já levou, impedindo-os de igualmente darem o seu contributo), tem como fito o ser um outro relato da guerra, posto que não estejam em causa, como no volume de 2007, as imagens da ferocidade do conflito, mas antes a recordação do que foi viver e conhecer as gentes da Lunda (a Lunda dos diamantes), parte norte de Angola que tinha na Diamang, a companhia de Diamantes de Angola, o seu centro vital. A questão, portanto, é esta: trata-se de um livro que é testemunho de vida, mas também uma sondagem a um tempo que, sendo o da juventude do memorialista, é resgatado para um presente que as gerações mais novas, porque o ignoram, nem podem imaginar.

Nuno Roque da Silveira, neste particular, mostra-se, então, como um memorialista exímio, isto é, alguém que, tendo a experiência do combate e, depois disso, a experiência de ter um outro olhar sobre a realidade angolana, transporta o leitor de hoje (seja esse leitor um eventual ex-combatente ou alguém que, nascido já depois do 25 de Abril de 74, não teve de olhar para a sua vida sentindo o horizonte ameaçado pela guerra) para uma época que, no espaço-tempo que a define, é não só a época da Diamang, mas a época em que, pelo Zemba, o Macondo, a guerra exigiu o sangue de muitos que não tiveram, como o autor, a sorte de sobreviver.

Nesse sentido, este livro é igualmente o pagamento de uma dívida de gratidão. E, apesar do que fica dito, quero sublinhar que, para além de inúmeras e deliciosas páginas sobre o quotidiano na Diamang (de emocionar a recordação dos leprosos que se aproximavam do memorialista, um trazendo os ovos guardados num cesto, e um outro que se arrastava de joelhos e oferecia a Nuno Roque “um sorriso do tamanho do mundo”), o que neste livro mais impressiona é o modo como a narrativa memorialística se vai montando, perfazendo um todo coerente e extremamente bem engendrado rio de memórias: um rio com afluentes, é certo - entenda-se, capítulos e algumas digressões dentro desses capítulos - mas cujo caudal é magistralmente controlado por uma voz que, mergulhando na viagem ao passado, sabe que Luxilo é mais que um nome, uma estância merecida e um emblema depois dos padecimentos em combate.

Um memorialista, ao contrário do autobiógrafo que manipula e quer fazer chegar a narrativa ao melhor retrato de si próprio, não tem como finalidade dar-se a conhecer na sua melhor versão. Por definição, o memorialista é alguém que sabe que o que conta não pode estar blindado contra as facetas humanas, e por isso imperfeitas, de quem humanamente vive. Memórias, ou a literatura do “eu” - que abrange a autobiografia, o diário, a carta e o género memorialístico - nestas páginas o próprio discurso na 1ª pessoa do plural como que neutraliza qualquer tentação de protagonismo por parte do narrador. Expressões como “nossos camaradas”, “nosso comandante”, “O nosso capitão Adriano Sanches”, “tínhamos passado pelo Dundo”, bem como a imersão da voz nas imagens do que poderíamos ver como crónica de costumes (pp.44-45 e a digressão pelo ano de 1963, antes da ida para a guerra, e as questões da habitação em Portugal em tempo de industrialização), isso sabiamente se equilibra com a convocação da memória por via de outros textos que conferem ao texto memorialístico uma dimensão especular: especulativa, por um lado, de espelhamento por outro. Falo das epígrafes que Nuno Roque da Silveira, sabiamente, vai convocando à medida que, de capítulo para capítulo, a memória se desfia. Essas epígrafes não são amostragem de qualquer erudição a destempo (o autor é, sabemo-lo, um leitor arguto e um homem de extensa cultura e que fala com a experiência de alguém que tem 85 anos), mas antes um modo de dotar o relato de uma espécie de pano de fundo, ou de música de fundo que melhor nos transporta no tempo.

São muitas as passagens em que, a reboque de epígrafes de poetas - Gastão Cruz, Sebastião da Gama, Luís Filipe Maçarico, Mário Quintana; de um ficcionista (Agustina); ou epígrafes onde ressoam provérbios, ditos coloquiais, sentenças - a memória se deslaça e faz cruzar no plural do discurso a primeira pessoa, ou, expandindo o alcance das imensas fotografias que legendam a memória das palavras, entressacha o passado no presente: “Estamos em fins de Junho e preparamo-nos para ir de férias até Lourenço Marques, de onde saí de casa dos meus pais com treze anos. Será um encontro com um passado e estarei não só com eles, como com o meu irmão mais velho, de nome Sertório, e conhecerei, finalmente a minha cunhada Lígia e o Nuno Sérgio, o meu primeiro sobrinho […]” (p.298). E se regressar à antiga Lourenço Marques foi, para o memorialista, um “acerto de contas com o passado”, a verdade é que este livro - que igualmente se lê como um romance de aventuras, ou como um romance de personagem ou de formação (de tal modo se sedimenta para o leitor a ideia de que há um “eu” em processo de auto-conhecimento, ultrapassando estranhos ritos de passagem) - é, ele todo, um modo de acertarmos, os portugueses de hoje, contas com os que fizeram a Guerra Colonial - o nosso Vietname - e nem sempre foram respeitados e acarinhados pelos que, neste tempo de desmemória, adoram a guerra porque nunca nela estiveram, nunca combateram nem sofreram com a morte de irmãos de sangue, nem com a saudade da terra natal e da família.

Há inúmeras páginas de intensa descrição dos lugares, das pessoas, dos hábitos e costumes nessa Diamang que era quase um continente. São muitas as passagens em que, imerso no olhar memorialístico, o cheiro de África, o Niassa ou o Odemira e o Falé (camaras de armas) o passado se faz um pretérito perfeito… O manancial de documentos que emprestam ao relato a verosimilhança e a verdade, eis o que o leitor pode facilmente adivinhar pelo pormenor com que Nuno Roque da Silveira narra do mais íntimo ao mais ínfimo acontecimento. Uma tese sobrevém ao muito que aqui se conta: “O dia a dia com esses soldados ensinou-me a conhecer melhor o ser humano nas suas mais diversas idiossincrasias, permitindo-me na minha futura vida profissional detectar, com facilidade, quem tinha pela frente”, lê-se, a páginas 426. Tese e lema de vida?

Este livro tem um subtítulo: Na Lunda da Diamang e dos Quiocos, mas poderia ter ainda um outro que, creio, Nuno Roque da Silveira, não desdenharia: “tratado da convivência humana”, posto que, no limite, a Guerra Colonial foi, para os que a fizeram, ir ao inferno e voltar vivo, conhecer o paraíso - esse estado de alma de alguém que, na Lunda se descobriu e compreendeu o tempo como realidade total: “Ninguém virá fechar as cicatrizes / do nosso anoitecer Nem felizes / nem infelizes serão os nosso ossos”, escreveu Gastão Cruz. Quer dizer: o memorialismo feito memorial da vida de toda uma geração: os de 1960.

Professor, poeta e crítico literário

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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