Na circunstância do cinquentenário, o 25 de Novembro volta a dividir opiniões e partidos políticos. A divisão não é dicotómica. Entre os socialistas, após o décimo aniversário da experiência governativa da Geringonça, a data é gerida com moderação. Há que reivindicar, é certo, o legado de Mário Soares durante o Verão Quente, atribuindo-lhe o monopólio do enfrentamento da extrema-esquerda. Mas é preciso também não a melindrar, garantindo o mito de Abril e respetivo culto. O 25 de Abril é símbolo arquetípico da aurora democrática. E os símbolos não são partilháveis. Assim, os socialistas assumem sem reservas ter sido em Abril que a democracia teve o seu «dia inicial inteiro e limpo», embora admitam, se bem que a contragosto, comemorações em Novembro.Precisamente porque a questão é simbólica, tanto na direita quanto na extrema-esquerda Novembro suscita menos ambiguidade. Para esquerdistas radicais, a data será sempre motivo de consternação genuína. Tendo bom gosto musical, lembrar-lhes-á certamente a segunda versão de Tanto Mar, quando a voz de Chico Buarque inicia um lamento nostálgico: «já murcharam tua festa, pá, mas certamente esqueceram uma semente nalgum canto do jardim». Quanto aos comunistas, pouco dados a alterações na letra da música, trata-se apenas de recusar branqueamentos contrarrevolucionários: enquanto se mantiverem no parlamento não participarão na efeméride. Finalmente, e por contraste, a direita resolveu empenhar-se nos festejos, promovendo a imitação da sessão parlamentar dedicada ao 25 de Abril. Não se sabe por que critério, os berrantes cravos vermelhos foram substituídos por mais discretas rosas brancas. São arranjos sem força simbólica, mas valem pela melhoria estética.Por tudo isso, tem razão a esquerda, ao acusar o 25 de Novembro de ser uma data divisionista. É verdade. Sempre haverá quem encontre nela a odiosa ocasião em que, cantava José Mário Branco, «a festa se estragou e o mês de Novembro se vingou». E sempre haverá também quem aí veja a eclosão da verdadeira democracia, quando, vencida a embriaguez esquerdista, se devolveram os militares barbudos aos quartéis e as pessoas cansadas à vida normal. Perante tal disparidade de juízos, valerá realmente a pena celebrar a data? Fará sentido comemorá-la cinquenta anos depois? A resposta talvez exija considerar um detalhe pouco valorizado: o 25 de Novembro aconteceu quinze dias após a independência de Angola e não teria acontecido sem ela.O Partido Comunista consumara então a sua missão, entregando ao comunismo internacional a África portuguesa. Depois da Guiné, também Moçambique tinha sido abandonado à mesma sorte, quando um decreto publicado a 24 de junho, véspera da sua independência, despojava da cidadania portuguesa inúmeros africanos e possibilitava que fossem atirados para a frente dos pelotões de fuzilamento da guerrilha. Por isso, quando, em Novembro, Portugal se livrou da revolução em curso, libertando-se de saneamentos e arbitrariedades, perseguições e prisões políticas, torturas, fuzilamentos simulados e outras sevícias, não se livrou da mácula e da vergonha. Regressou à normalidade possível, mas ninguém ganhou. «Perdemos todos», dizia uma personagem do romance Novembro de Jaime Nogueira Pinto. É por isso – e não por ser uma data que divide – que Novembro não merece, de facto, grandes comemorações.Deveremos, ainda assim, celebrá-lo, fazendo-o para lembrar o alívio que representou o fim do desvario revolucionário? Talvez. Porque não? Mal não faz.