Novas viagens na minha terra

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Aconteceu que fui a Penafiel, a convite da excelente Escritaria, para uma homenagem, merecida e muito bem concebida, à Ana Luísa Amaral. Mas aconteceu mais nessa viagem: é que além dos nossos gentilíssimos e inexcedíveis anfitriões penafidelenses e dos meus amigos escritores e jornalistas ali presentes, tive, graças a uma excursão literária que aquele município promove, três encontros inesquecíveis.

Eu já sabia da fama sulfurosa de um certo frade, que esperava a nossa excursão à saída da mala posta, no lugar de Casais Novos, freguesia de São Martinho de Recesinhos, lá onde se degustam os famosos "bolinhos de amor". Mas não esperava era ver sair de outra mala posta, pela mão de um homem vermelhusco e nutrido, que logo identifiquei como "o rubro e gordo Cabanelas" do poema, a figura franzina do jovem António Nobre, a caminho da casa de sua Mãe, ali perto no Seixo.

Tal como no poema, a mesa da estalagem onde nos encontrávamos tinha sobre as "toalhas brancas, honradas" uma boa oferta de doces e vinhos verdes. António Nobre, jovem caloiro de Coimbra, irritado e indisposto com as praxes, que já lhe tinham custado levar palmatoadas em público, e incomodado com o ar "bacharelático e funesto" que se respirava naquela Universidade, vinha ensimesmado e ausente, embora se sentisse aliviado com as férias familiares e manifestasse contentamento por reencontrar, ali nos Casais, a boa senhora Ana das Dores, que nos oferecia pão e doces e nos mostrava o magnífico fogão tradicional em que preparava todas aquelas vitualhas. Eu olhava para ele e via um garoto enfarpelado e elegante, envolvido na melancolia da sua solidão, a perguntar a si próprio "porque cismava" e a sonhar com o seu futuro.

A mala posta de António Nobre seguiu na sua viagem e nós refizemos caminho para Penafiel, onde viemos reencontrar aquele estranho frade em casa do meu colega (cônsul em Génova entre 1895 e 1916) Joaquim de Araújo, que nos recebeu a todos com grande excitação e alegria e quis saber de cada um a sua origem e percurso. Quando me identifiquei como seu colega diplomata, ele irrompeu num fluxo de queixas e de mágoas, alegando que o nosso Ministério "queria fazer dele um mero amanuense", ele, poeta e escritor, que traduzira ou fizera traduzir para italiano obras de

Camões, Antero (seu amigo do peito) e Garrett, ele que revelara aos portugueses a existência da escritora revolucionária luso-italiana do século XVIII Leonor da Fonseca Pimentel, pois bem, ele não tivera da parte do Ministério qualquer reconhecimento pelo seu trabalho nem qualquer compensação pela sua prolixa atividade em favor das letras portuguesas!

Consolei-o, assegurando-lhe, numa mentira piedosa, que esse merecido reconhecimento lhe iria chegar no futuro, pois nunca a posteridade é ingrata. A inteligente bibliotecária de Penafiel, Dra. Adelaide Galhardo, cuidou de vir confirmar bondosamente as minhas palavras e, depois de nos despedirmos, saímos para o largo, onde se nos deparou uma nova surpresa.

Dois moços estudantes de Coimbra galgavam a praça com ar apressado, quando lhes surgiu pela frente "densa mó de gente armada, com as armas embandeiradas de escarlate". Camilo Castelo Branco, tal era o nome de um daqueles estudantes, e o seu companheiro detiveram-se, receosos das emboscadas daqueles tempos de guerra civil e patuleia. E, realmente, os guerrilheiros, que eram miguelistas, "a tiro de bala mandaram-nos fazer alto, e nós parámos", conta Camilo. Era o terrível tenente Milhundres e os seus homens, mais "três maltrapilhos armados de foices", "um alferes de milícias montado" e "alguns pedestres em tamancos".

"Quem vive?" ouvimos perguntar, em voz bem alta, o tenente Milhundres:

"O senhor D. Miguel!" responderam, sagazes, Camilo e o seu amigo.

"O senhor D. Miguel primeiro!" corrigiu o zeloso tenente miguelista.

A cidade de Penafiel tinha-se esvaziado de repente, fecharam-se as lojas e as portas e janelas das casas, nem viva alma aparecia nas ruas.

"Que ovação!" comentou Camilo "Dir-se-ia que somos malta de salteadores que irrompemos das brenhas!".

Mas o chefe guerrilheiro mandou todos rumarem à Igreja, para pedirem a bênção de Deus para a sua santa causa, e assim os perdi de vista, pois Camilo, que fora contratado pelos rebeldes para escrever proclamações ao país, seguia atrás deles e, se quisermos conhecer o fim desta história, teremos que ir lê-la às Memórias do Cárcere, já que o meu testemunho pessoal e direto termina aqui.

O frade é que desapareceu, para não mais ser visto...

Diplomata e escritor

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