No fio da navalha

Psicologicamente ninguém estava preparado. Só quando o primeiro-ministro afirmou com solenidade estar em causa a "nossa própria sobrevivência" é que nos apercebemos da tempestade que aí vinha. "Temos de estar preparados para o pior", disse. Mesmo assim, não sabíamos bem o que era o "pior".

O pior é, certamente, encontrar o Afonso, meu amigo e cidadão muito querido da Mouraria, recomendar-lhe a observação dos cuidados individuais de proteção e saber que ele sucumbiu um mês depois a este maldito vírus.

O pior são todos os que como ele e de todos os bairros de Santa Maria Maior não resistiram.

O pior é receber um telefonema do Jaime, já nos cuidados intensivos, a dizer-me: "Senhor presidente, vou morrer...". Felizmente não.

O pior foi não ter podido ir ao funeral da minha amiga dona Felicidade, que tinha o sorriso mais bonito da Rua de São Miguel em Alfama.

O pior é olhar para os rostos fechados das pessoas, porventura uns revelando receio e outros incredibilidade, sabendo que podem ser atingidos por este "inimigo invisível".

O pior é ver o empobrecimento instantâneo de muitas famílias, atingidas pelo desemprego ou por perda de atividade e assistir, num espaço de dois dias, ao triplicar de pedidos de ajuda, sobretudo comida.

O pior é assistir à derrocada do comércio local, restaurantes e paralisação dos museus, coletividades e associações.

O pior foi ter de suspendermos os nossos serviços tão apreciados pelas nossas famílias residentes como o Ambijovem, a Universidade Sénior e a Orquestra Juvenil.

O pior é também ver gente insensível, que confiando na sua pretensa robustez física ignora a fragilidade dos outros pondo-os em risco de vida.

É claro que metemos mãos à obra. Estávamos preparados. Confinámos quem tínhamos de confinar. Recuámos para o teletrabalho quem tinha funções compatíveis para tal. Fizeram, todos, um magnífico e útil trabalho. Para os que tiveram de marcar presença organizámos o trabalho em "espelho". Na compacta equipa que teve de ficar fisicamente ao meu lado, estabelecemos prioridades: fornecer alimentos às pessoas, ir por elas às compras ao supermercado e à farmácia, continuar a prestar todo o apoio social e lavar/desinfetar o território.

E tão importante como estas prioridades, transmitir confiança, afetos e esperança.

Não "parei um segundo". Como sempre disse, "o presidente é o último a sair daqui".

De todos os desafios da minha vida, este é, sem dúvidas, o mais importante.

Foi e está a ser duro. Ninguém tem certezas de nada. A população tem sido fantástica, solidária e compreensiva. Trabalhadores e colaboradores continuam inexcedíveis. Muitos dos agentes económicos locais mobilizaram-se para nos fornecer alimentos. Ninguém ficou para trás.

Ainda há receios. Mas as pessoas sabem que podem contar com a sua Junta de Freguesia e o seu presidente.


Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG