No dia em que prenderam Trump

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No dia em que prenderam Trump, uma baleia foi ao fundo do oceano e depois veio ao de cima, a tomar ar. Houve árvores que cresceram. Fui ao jardim. Um cão olhou-me com os seus olhos de todos os dias, focados só na comida, indiferentes a urgências e a ambulâncias. O meu cão não é um gato nem eu sou o Derrida, mas lembrei-me do Derrida e do gato, de L'animal que donc je suis, do filósofo desnudado na casa de banho, sujeito ao olhar do gato. De Berlim veio a notícia de que uma elefanta do zoo, chamada Pang Pha e com 36 anos, é capaz de descascar bananas com a tromba. Mandaram-me um estudo de dois investigadores de Exeter, no Reino Unido, que fala da "cegueira vegetal", o facto de prestarmos menos atenção às plantas do que aos animais. Prossegui a leitura de um dos livros mais encantadores, belos e poéticos que li nos últimos tempos, Pensar como uma montanha, de Aldo Leopold, há pouco editado ou reeditado pela Maldoror, sempre fantástica. "O bando emerge das nuvens baixas, um esfarrapado estandarte de aves, juntando-se e afastando-se, mas avançando, com o vento a batalhar amorosamente a cada bater de asas. Quando o bando não é mais uma mancha no céu longínquo, ouço o último grasnar, dobrando a finados pelo Verão." Conheci-o pela mão sempre sábia da Ana Coelho, da Palavra de Viajante, uma das melhores livrarias de Lisboa e do meu mundo tão pequeno. A dado trecho, Aldo Leopold, que trabalhou quase 20 anos nos Serviços Florestais dos Estados Unidos e foi figura-chave do movimento conservacionista americano, descreve o abate de uma árvore antiga, o lento avançar da serra pelos círculos concêntricos do seu tronco; em cada um desses círculos, correspondente a uma década, fala do que ia sucedendo no atribulado reino dos homens. A História patente em madeira.

No dia em que prenderam Trump, portanto, o essencial do mundo e da vida prosseguiu ao ritmo de sempre, sem saber sequer quem foi ou é Donald Trump, ignorando o que fez ou não fez para que agora o tenham chamado à Justiça. Passei o dia na Torre do Tombo, às voltas com os livros-copiadores de correspondência expedida e recebida no Governo Civil de Lisboa em meados do ano de 1910 (cota PT/TT/AC/GCL/H-F/001-001/011, por aí à volta). Uma curiosidade: no único Ofício expedido a 5 de Outubro de 1910, assinado por Eusébio Leão no dia da Revolução, diz-se tão-só: «Sirva-se Vª Exª mandar em liberdade todos os presos políticos.» Dias depois, já estava Eusébio Leão a oficiar a toda a gente por causa dos padres do Barro, que tinha para lá presos sem saber o que lhes fazer. E, no dia 13, fazia circular um Ofício do administrador do Concelho de Cascais, que tinha mandado selar e lacrar as portas do Real Palácio da Cidadela - e agora pedia ordens.

Para quem tenha paciência e gosto, os livros de correspondência do Governo Civil de Lisboa são uma fonte preciosa para acompanhar o pulsar da vida e a chamada "dinâmica da sociedade civil", num distrito onde, em meados de 1910, tanto ocorriam altercações da ordem pública em Vila Franca de Xira, como casos de jogo ilícito em Almada, e dezenas e dezenas de espectáculos de beneficência, quermesses, concursos, funções públicas e privadas. Oficiava-se a Sobral de Monte Agraço para saber como ia o serviço de extinção de cães nessa localidade, enquanto se acompanhava de perto a venda de armas de fogo no distrito ou a existência de vagas para mulheres no Asilo da Mendicidade ("Ao ofício de Vª Exª nº 873 de 16 do corrente, Sª Exª o Governador Civil incumbe-me de responder que, no Asilo de Mendicidade, não há vaga para mulheres"). Tratava-se da acção da Comissão Nacional de Socorros às Vítimas do Tremor de Terra (possivelmente o de 1909, em Benavente), à qual o pároco de Alhandra pedira dinheiro para reparar o telhado da Igreja da Misericórdia, ou a magna e intrigante questão do desaparecimento de pombos-correio na Azambuja, merecedora de vasta correspondência, por suspeita de terem sido mortos por caçadores de maus fígados. O Aeroclube de Portugal solicitava policiamento para o Hipódromo de Belém, com vista a um concurso de papagaios, e a Snrª. D. Adelaide d'Almeida e Vasconcelos de Mendonça pediu permissão para realizar uma quermesse no Palácio dos Condes de Magalhães, isto enquanto, num registo mais popular, se autorizava a realização da rifa de um quadro pintado por um professor da Escola Marquês de Pombal, já falecido, para que os proventos fossem entregues à respectiva viúva. A Academia Recreativa "Os Vencedores" solicitou igualmente a abertura de uma quermesse, mas na Azambuja houve notícia de problemas no esgoto de uma fábrica de destilação. Em Oeiras, jogo ilícito.

Ao Governo Civil afluíam muitos casos de estrangeiros procurados ou detidos, como um súbdito alemão acusado de burla ou o de um espanhol perseguido por falsificação. Da Moita, pedia-se o pagamento do abono de serviço aos polícias civis da localidade, havendo ainda que tratar do envio para Carregal do Sal do menor José Marques Diniz, detido nos calabouços do Governo Civil, onde, em 27 de Maio de 1910, dava entrada um Ofício informando de outro falecimento, mais um, de um pombo-correio na Azambuja. O guarda do corpo de polícia José Bernardo foi superiormente autorizado a usar o apelido "Faria", não sendo esse o único caso, longe disso, de permissão onomástica dos agentes da autoridade da capital nacional. O Real Ginásio Clube Português impetrou isenção de Contribuição Industrial e, noutra missiva, tratou-se da concessão do régio exequatur ao vice-cônsul da Nicarágua em Lisboa. Novas associações de classe, algumas das quais espantosas, como a dos Industriais de Tanoaria do Distrito de Lisboa, a Sociedade de Horticultura e Floricultura de Portugal, a Associação dos Trabalhadores e Serventes de Pedreiro e Estucador, a Associação de Classe dos Vendedores de Carvão e, a melhor de todas, a Associação dos Vendedores de Leite Mungido na Via Pública.

O jornal Germinal, claro, foi multado, e a prostituição lá ia surgindo de forma discreta, mas sempre presente: o governador exonerara Maria da Graça do lugar de servente do Dispensário Ocidental de Toleradas, nomeando Amélia da Conceição Marques para esse lugar. Na Vila Dias, a Xabregas, a inspecção sanitária notou inconcebíveis despejos para a via pública, oficiando o Governo Civil para que de futuro se evitasse "a repetição de tais abusos". Com vista ao Concurso de Gado Bovino, a efectuar no Campo Grande a um domingo, dia 5 de Junho, com a presença de Sua Majestade El-Rei, ordenou o governador civil Magalhães Ramalho a mobilização da necessária força de polícia para o recinto. Questão espinhosa, também tratada pelo Governo Civil, foi a seguinte: pretendendo proceder-se à aquisição, para as forças da ordem, de 100 revólveres calibre 38, modelo médio, oficiou-se ao embaixador português em Washington, o qual, tendo contactado potenciais fornecedores norte-americanos, respondeu dizendo que estes afirmavam desconhecer o que fosse "modelo médio" (mais à frente, há notícia de que o embaixador recebera da firma Smith & Wesson, de Springfield, o respectivo catálogo e tê-lo-á enviado para Lisboa, sem que depois se saiba como se resolveu este imbróglio armamentista).

Num tropel de acontecimentos e movimentos, com a vida a fluir ao ritmo de um filme mudo, imaginamos cavalheiros operosos de fartos bigodes, na lufa-lufa dos seus dias, mangas-de-alpaca atarefados, vadios de barba malfeita, viúvas azedas e cuscas. No Barreiro, alguém se queixou da existência de um depósito de carvão num barracão sito no pátio de João Pereira, Rua Vale Formoso de Baixo, e o farmacêutico da Farmácia da Rua do Crucifixo, nº 84, Lisboa, também se queixou, mas desta feita da forma abusiva como tinha decorrido a visita inspectiva da Polícia Sanitária ao seu estabelecimento. Júlio Rodrigues de Sousa Lopes obteve licença para a condução de automóveis e, não muito depois, era procurado um tenente da Marinha Real sueca, com "23 anos e 1,80m de altura, porte altivo, esbelto, sem barba, cabelo muito castanho escuro, rosto comprido, tostado do mar, olhos azuis, nariz grande e agudo, largo na base, orelhas grandes proeminentes", "trajando provavelmente fato azul, sobretudo cinzento, chapéu preto ou panamá", acusado de desvio de fundos, que fugira de Estocolmo para Berlim e daí até Lisboa, vá-se lá saber como ou porquê (não muito depois, houve ordem para capturar um "súbdito peruviano" acusado de "subtracção fraudulenta"). A Associação de Imprensa promoveu ou pretendeu promover um bazar no Jardim da Estrela, de Vila Franca pediram dois guardas para fiscalizar uma toirada, o administrador de Sesimbra solicitou outros dois guardas, um empreendedor lisboeta pediu licença para erguer um depósito de madeiras. Surgiram novas de jogo ilícito em Aldeia Galega. E os preparativos devidos para a corrida automobilística, promovida pelo Real Automóvel Clube de Portugal, "na Estrada da Pimenteira, que vai da Ribeira de Alcântara à Cruz da Oliveira, na extensão de 1500 metros". Informou-se o administrador de Almada que Perpétua Natividade, remetida a Rilhafoles, não fora considerada doente pelo director daquela instituição, pelo que deveria ser conduzida à família, caso a houvesse. Em contrapartida, tinha saído de Rilhafoles, por curar, uma mulher que sofria, e cita-se, de "demência paralítica" (também Francisco Antão Araújo, morador na Rua Augusta, nº 213, 4º, saíra por curar de Rilhafoles). Uma mulher de nome Emília das Neves foi mandada recolher ao Asilo da Mendicidade por ser "indigente e idiota", facto atestado pelo prior e pelo Regedor da freguesia das Lamas. Mandava-se entregar ao administrador de Penalva do Castelo a menor Lucinda de Albuquerque para que aquele a devolvesse à avó ou à tia, uma vez que a sua mãe a abandonara em Lisboa, antes de rumar para o Brasil, Rio de Janeiro.

Discutiu-se ao tempo, em missivas várias, a construção de um novo cemitério em Rio de Mouro e, não longe, a companhia "Cintra ao Oceano" queixou-se de inúmeros e reiterados roubos. As escolas monárquicas da capital promoveram também o seu bazar, a Associação "Concentração Musical" pediu que a deixassem tocar num cortejo fúnebre, isto enquanto os moradores do Bairro Estrela d'Ouro intentaram, com sucesso, fazer uma quermesse, por certo não muito diferente de outra, levada a cabo pela Sociedade Alunos de Minerva. E a Associação de Classe dos Torneiros quis que fossem responsabilizados os empreiteiros, e não eles, torneiros, por certos desastres havidos na colocação da iluminação pública de Lisboa. A chegada à capital, no Sud-Express, do Conde de Granard, Embaixador Extraordinário do rei da Grã-Bretanha e Irlanda, implicou preparativos adicionais, informando-se as polícias que o Conde iria ficar hospedado em Belém, no Paço. Em 26 de Abril de 1910, solicitou-se a instauração de vigilância permanente junto ao monumento a D. José I, "para se evitarem os vandalismos que tem suscitado esse monumento e as cenas escandalosas que naquele lugar se praticam." Também pela mesma altura: "Para Vª Exª. se servir informar o que se lhe oferecer, Sª Exª. o Governador Civil encarrega-me de remeter a essa Inspecção quatro requerimentos de Francisco Gonçalves Aparício a solicitar certidões de matrícula das meretrizes que indica."

A dois passos do Paço de Belém, onde iria ficar hospedado o Conde Granard, a Junta da Ajuda reclamava contra o facto de continuarem a depositar-se estrumes no Campo das Salésias, vindos do Quartel de Lanceiros, e, mais ainda, de por lá andarem "suínos e outros animais nocivos à segurança dos transeuntes e à higiene do local". O administrador de bairro deslocou-se ao local, confirmando a porcaria, facto que originou mais um vendaval de ofícios. Também o odor da morte: comunicação às famílias de que o soldado Francisco, filho de Pedro Dias, falecera em Angola e, mais tarde, que o primeiro-cabo Carlos Alberto de Moura também morrera, mas em Moçambique. Alfredo Leal queixava-se de que o tentaram assassinar, e pedia providências ("junto um revólver que, parece, se relaciona com os factos", disse o secretário-geral do Governo Civil de Lisboa).

Muitos casos de vadios e loucos, como Gertrudes Luiza, levada para Rilhafoles, oficiando-se ao administrador de Sesimbra para pagar a despesa. Na frente criminal, continuava o furto de linhas telefónicas militares e, mesmo sem fumo de ilícito, o Circo de Algés comunicava dificuldades em pagar mais efectivos para as suas representações. De Almada, pedia-se polícia para os festejos de dias 22, 23 e 24, enquanto a Real Academia Triunfo e Aliança quis fazer caridade no Campo Grande, talvez para cobrir os prejuízos que Alvalade tivera com as grandes chuvadas de 27 de Junho. Em Benfica, também filantropia da Sociedade "Euterpe", sendo libertado, entretanto, o vadio Policarpo Ramos, mandado para Aljezur. Para a Colónia Agrícola de Vila Fernando foram enviados catorze menores vadios, por certo vadios menores, e ao Governo Civil afluíam muitos pedidos, alguns vindos do Ministério da Guerra, para mandar verificar in loco se eram vivas as viúvas de militares que auferiam pensões do Estado. Uma delas, que enviuvara de um tenente e morava no Mosteiro de Santos-o-Novo, suscitou particular atenção das autoridades, atestada por ampla correspondência; outro caso, versando viúva de um general, residente no nº 144, 1.º andar direito, da Rua D. Carlos I, foi aparentemente mais pacífico.

No âmbito empresarial, o proprietário de uma agência de serviçais solicitou autorização para se transferir para o n.º 38 da Calçada do Sacramento, isto ao fim de um processo embrulhado, em que primeiro pensou ir para outro lugar, mas depois desistiu e reformulou o seu pedido. Também nesse âmbito, pedido para abertura de uma fábrica de conserva de peixe em Cascais e de outra, pela firma Viúva de J. J. Nunes, para a laboração de uma fábrica de cartas de jogar. O administrador de Cascais solicitou seis polícias para manterem a ordem numa corrida de garraios, o governador autorizou e mais declarou que deveriam ser abonados de gratificação e transporte, exigindo-se-lhes, em contrapartida, que estivessem naquela vila pela uma hora da tarde. Tentou internar-se uma criança surda-muda na Casa Pia de Lisboa, mas os responsáveis daquela instituição informaram que ela era demasiado menor para aí ser recebida, uma vez que a idade mínima de ingresso eram os sete anos. Impressionante é também o expediente burocrático com que se tentou localizar uma criada de servir de 18 anos, Elisa Rosa Nunes, desaparecida na Bélgica. Menos problemática, do ponto de vista humano e social, ainda que não político, terá sido a realização de um comício republicano em Barcarena - ou a abertura de uma fábrica de destilação de aguardente em Torres Vedras. Trocavam-se cartas oficiais sobre Horácio Alves ou, melhor, sobre a ausência de lugar num asilo para o albergar, sobre a realização de um comício político na Arruda dos Vinhos, sobre o abatimento de cães em Torres Vedras ("Não se encontra nesta Repartição a nota dos cães abatidos nesse concelho no mês de Julho último, nem a informação sobre a repressão de jogo ilícito. Convém, pois, que Vª Exª. se digne remeter duplicado desse expediente"), sobre a reparação de um moinho também em Torres Vedras, sobre a abertura de um lugar de venda em Pedrouços. Em 16 de Setembro de 1910, nas vésperas da revolução, soaram alarmes de uma grave epidemia de cólera, isto enquanto o Governador Civil procedia a novas e mais diligências sobre o serviço de extinção de cães em Alcochete e quatro menores davam entrada na Casa de Correcção das Mónicas. Vieram as Companhias Reunidas de Gás e Electricidade insurgir-se contra a construção de uma fábrica de fitas animatográficas, quase contígua a dos gasómetros daquela empresa.

Benemérita, a tropa doava 150 camas sem uso à Liga Patriótica, para internato da infância desvalida, o senhor Governador Civil continuava preocupado com os serviços de extinção de cães em vários concelhos, pedindo dados, reclamando estatísticas, mas, mesmo à beirinha de uma mudança de regime, o expediente era ocupado pelos seguintes temas: a sociedade que explorava o Teatro São Carlos pedia verbas para o arranjo das canalizações e para o conserto dos relógios, que tardava, sem fim à vista; o Patronato da Infância lançara uma tômbola, carecia de autorização; o espanhol Carlos Alvarez era detido, havendo dúvidas sobre a sua real identidade, como dúvidas havia, mas logo desfeitas, sobre a identidade de seis missionários estrangeiros aportados a Lisboa. Uma força estacionada em Aldeia Galega, por "receio justificado de alterações de ordem pública" não tinha colchões para dormir, havendo que providenciá-los. Nos calabouços penava António dos Santos, 12 anos, já condenado por vadiagem. Faltavam impressos para as Certidões de Óbito, depois lá vieram, muitas missivas sobre as listas dos preços de medicamentos, e outras, em menor número, sobre os serviços sanitários das toleradas. Envio de catorze vadios para Luanda.

Pelas mãos da autoridade administrativa passaram os ofícios oficiais com que se procedeu, ou mandou proceder, à competente vistoria a umas capoeiras sitas no quintal da Rua dos Castelinhos, nº 3, rés-do-chão, à demolição de uns barracões de tábuas na Quinta dos Padres, ao Poço do Bispo, ao surgimento de alguns casos de varíola, à proibição de os carroceiros particulares removerem "os lixos contidos nos recipientes das habitações", ao malfadado Cofre de Aposentações e Reformas dos Actores do S. Carlos, ao menor José Leopoldino, aos eternos mapas de extinção de cães ("abatidos 38 animais de raça canina no Seixal"). Isto para não falar, claro, dos actos indecorosos ocorridos na taberna da Travessa do Sacramento, nº 14, a Alcântara, ou do facto de existir, em laboração sem licença, uma padaria que "fabrica pão industrialmente" na Portela, sendo o seu proprietário reincidente, pela terceira vez, nesse ilícito socioeconómico. A 6 de Setembro de 1910, Magalhães Ramalho enviava a várias entidades Ofício do seguinte teor: "Incluso remeto a Vª Exª o mapa do Serviço Sanitário de Toleradas, feito nesta cidade, durante o mês de Agosto findo."

Enquanto isso, iam sendo registados no livro competente, respeitante às capturas enviadas a juízo, os nomes dos autores de crimes ou demais ilícitos, um mundo que, pela sua menor gravidade, escapava em regra ao olhar da imprensa sensacionalista. Numa amostra escolhida ao acaso, no dia 4 de Outubro de 1910, véspera da revolução, foram apresentados seis cidadãos ao juiz, acompanhados, dois deles, de dois revólveres, e outros três com uma pistola automática, um punhal, uma navalha sevilhana e ainda mais dois revólveres, um punhal e algumas balas; mais pacato, ou talvez não, José da Silva era apresentado por agressão, acompanhado de uma bengala (é impressionante o número de bengalas levadas a tribunal, sendo elas, de longe, a arma de defesa e ataque mais utilizada à época). A 5 de Outubro, surpreendente tranquilidade, com uma só detenção, a do azarado Sebastião da Silva, incriminado por posse de arma proibida, mais precisamente um florete, também remetido a juízo. Nos dias próximos, detenções por embriaguez, furtos, armas proibidas ("remeta-se um ferro pontiagudo do feitio dum punhal", "remeta-se navalha"), abuso de confiança, agressões a polícias, desobediência, escalamento de prédios, atropelamentos, apedrejamentos (também chamados "tiroteios com pedras").

No dia 4 de Julho, o Serviço da Noite recebeu António Gonçalves, por furto, sendo o produto da sua actividade uma eloquente síntese do que seria o produto da actividade de um larápio na Lisboa de 1910: "Um chapéu para cabeça de homem, um par de calças de cotim, uma camisa, um cordão de prata, uma moeda de 200 do centenário da Índia, 280 fios em níquel e cobre, um canivete, um espelho, um pente da caspa, um sabonete, quatro bilhetes postais, duas cautelas de penhores e um relógio de prata." Noutro caso, de jogo ilícito, um pormenor delicioso, centrado na arma do crime, enviada a tribunal: "Remeta-se um baralho de cartas".

São escassas, quase nenhumas, as ocorrências com prostitutas e, quanto a crimes sexuais ou congéneres, apenas a detenção de um homem, em 13 de Setembro de 1910, por desfloramento e, em datas próximas, de um outro por ofensas à moral. A 7 de Agosto, Manuel Bernardo seria detido por "escândalo" e, no mesmo dia, Inocêncio Fernandes era acusado de atentado ao pudor. A 8, Manuel José da Fonte era detido por "obscenidades", sendo levado ao juiz na companhia do cabo de uma vassoura. Já a 2 de Julho, era Maria de Sousa detida por "obscenidades", nada mais se sabendo. Jerónimo A. P., músico reformado da Armada, foi detido a 1 de Agosto por desfloramento e, a 16 e a 12 de Julho, respectivamente, Carlos Neves e João do Carmo eram detidos por "actos desonestos". E outro ainda, preso decerto por um polícia mais pudico, levado a juízo por "actos repelentes" (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Livro de Registos de Capturas Enviadas a Juízo, Livro 12, PT/TT/AC/GCL/H-F/001-001/0012).

Dizia Marx que a História se repete "primeiro como tragédia, depois como farsa", e é possível, talvez provável, que Donald John Trump, 45.º Presidente dos Estados Unidos da América do Norte, já tenha entrado no domínio da farsa. No dia em que foi levado a tribunal, por ter comprado o silêncio de uma actriz de filmes de pornografia, pensei que vemos o passado de uma forma cómica, burlesca, como um filme de Chaplin, que o encaramos com uma soberba nostálgica, por nos julgarmos mais sabedores e sabidos do que aqueles que nos precederam. No fundo, porque julgamos que o conhecimento e a experiência são cumulativos, ou seja, que sabemos tudo o que os nossos antepassados sabiam e sabemos ainda mais do que eles, coisas novas sobre computadores, idas à Lua, inteligência artificial, Trump e Putin. Esquecemo-nos de que, nesta progressão do mundo, há muita sabedoria que se perde pelo caminho, que houve bibliotecas inteiras que arderam, palácios que desabaram, que deixámos de conhecer os nomes das árvores e das plantas, os sons que fazem as aves. E esquecemo-nos, sobretudo, de que aquilo que hoje nos parece urgente e gravíssimo, capaz de suscitar discussões infindas, zangas de morte, será um dia encarado como burlesco e cómico, olhado com o mesmo sorriso altivo com que agora lemos os Ofícios do Governador de Lisboa no ano de 1910. O presente não deve levar-se demasiado a sério, pois em breve será passado. E o que de essencial ficará, imune à lei da farsa, não será Trump ou a TAP, mas as baleias, os cães - e as árvores centenárias.

À memória de Rita Garnel

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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