Era uma maravilha, um tesouro incalculável. Falamos, obviamente, do Café Oriental, inaugurado em Dezembro de 1925 no Largo do Toural, cidade-berço de Guimarães. Decoração a cargo do capitão Luís de Pina, com colaboração do pintor Joaquim Pachorca, aposentos faraónicos, ao melhor do estilo egípcio: as portas da rua, inspiradas no pavilhão real de Ramsés III; as colunas interiores, iguais às do templo de Karnak; aqui, uma estátua de Ramsés II; acolá, o busto de Nefertiti, réplica do de Berlim; tectos pintados de azul, com estrelas e abutres, evocando os tempos e os templos de Tebas; mobiliário ao gosto oriental, vindo da vimaranense Marcenaria Neves & C.ª, Lda.; papéis pintados nas paredes, com cenas do Império Antigo. Em 42 anos de existência, por lá passaram gerações, houve tertúlias, namoros, politiquice e negócios, numa atmosfera única de que hoje mais não restam do que pálidas recordações e belíssimas imagens do não menos belíssimo blogue Restos de Colecção (obrigado, José Leite, serviço público!). Em 1967, o Banco Português do Atlântico adquiriu o imóvel e não teve melhor ideia do que demolir o seu interior. Foi tudo: as estátuas de Ramsés, as colunas dos faraós, as pinturas delicadas, mostrando as pirâmides e a Esfinge. A destruição patrimonial e paisagística que os bancos, com a CGD à cabeça, têm perpetrado ao longo de décadas por esse país fora é coisa atroz e inaudita, tendo ocorrido tanto em ditadura como em democracia, num perverso conúbio de promotores imobiliários na mira do lucro imediato e fácil, de poderes públicos ausentes, de autarcas corruptos e/ou ignaros, de cidadãos passivos e incultos. Uma desgraça..Além do encanto das formas, o Café Oriental, erguido três anos após a descoberta do túmulo de Tutankhamon, era, porventura, o maior exemplo que tínhamos em Portugal da febre e da moda que assolou o mundo na sequência do sensacional feito de Howard Carter em 1922, e que Florbela Espanca glosaria num poema justamente intitulado A Moda, publicado no nº 2 da revista Portugal, em 1923, que a dado trecho diz assim:.Tutankhamen, enterrado.Há três mil anos ou mais,.Dormindo, mumificado,.Numa cova, entre areais;.Faraó omnipotente,.Deus da Moda em seu país,.Mal ressurge e, de repente,.Ordena a Moda em Paris!....Aprendi estas e muitas outras coisas numa excepcional exposição patente (até dia 5 de Abril) na Biblioteca Nacional, "Tutankhamon em Portugal: relatos na imprensa estrangeira, 1922-1939", e no não menos excepcional curso livre que, sobre esse tema, José Candeias Sales e Susana Mota estão generosamente ministrando, também na Biblioteca Nacional. A par disso, não os esqueçamos, a exposição "Faraós Superstars", que a Gulbenkian leva a cabo até 6 de Março, e o ciclo "Nas Terras dos Faraós", à Cinemateca Portuguesa. Havendo tempo e interesse, disponibilidade e curiosidade, a oferta é, pois, muita e muito frondosa, quase parecendo que, volvidos 200 anos sobre a decifração dos hieróglifos, por Jean-François Champollion, e 100 anos volvidos sobre a descoberta da tumba de Tutankhamon, por Howard Carter, Lisboa voltou a ser devorada pela "tutmania" ou, mais amplamente, pela "egiptomania". Isto, claro, enquanto se insiste e persiste num abominável Acordo Ortográfico que nos obriga a escrever "Egito", de um lado, mas "egípcios", do outro, uma prova, entre muitas, do seu desnorte patético - e pateta..O Egipto suscitou desde sempre o fascínio dos estrangeiros: no ano 47 antes de Cristo, ao descer o Nilo, Júlio César terá sido o primeiro turista a visitar o país, inaugurando uma moda duradoura, que ainda hoje persiste, passados dois milénios. Curiosamente, o destino do país foi também marcado pelos portugueses, diz-nos Toby Wilkinson em A Wold Beneath the Sands. Adventurers and Archaelogists in the Golden Age of Egiptology (Picador, 2020), uma apaixonante digressão pela egiptologia moderna e pelas suas sucessivas vagas, a francesa, a inglesa, a prussiana, a norte-americana. Refere Wilkinson que, em 1501, os lusos afundaram uma armada egípcia fundeada ao largo de Calecute e, meses depois, arrasaram toda a armada egípcia do Mar Vermelho, um golpe fatal para o comércio no Suez, que obrigou os mercadores a usarem doravante a rota do Cabo da Boa Esperança. Com a sua marinha destruída e a economia em ruínas, o país tornou-se vulnerável à cobiça dos estrangeiros e, em 1517, foi invadido pelos turcos, que o dominaram durante 400 anos..Não se perdeu, porém, a curiosidade por aquela estranha e cálida terra, alvo do olhar de viajantes como o príncipe polaco Nicolau Radziwil, que em 1583 aí permaneceu mais de dois meses, no decurso de uma peregrinação à Terra Santa, périplo que registaria num livro, Hierosolymitana peregrinatio, com várias edições em latim, alemão e polaco. Em 1616, George Sandys, filho do arcebispo de Iorque e um pioneiro da colonização da América do Norte, esteve um ano na Turquia, na Palestina e no Egipto e ali visitou as pirâmides, que concluiu não terem sido construídas pelos judeus, deslumbrando-se com um animal nunca visto, os crocodilos do Nilo. Na década de 1630, o matemático e astrónomo inglês John Greaves empreendeu aquela que foi, provavelmente, a primeira abordagem científica e sistemática às antiguidades egípcias, medindo as pirâmides com notável precisão, entrando no seu interior, estabelecendo, de uma vez por todas, que se tratavam de monumentos funerários de um credo antiquíssimo, tese desenvolvida em Pyramidographia, or a Discourse on the Pyramids in Aegypt, de 1646, que compreensivelmente suscitou a crítica dos seus contemporâneos..Enquanto isso, nascia outra aproximação ao Egipto, mais mística, mais ocultista, mas com iguais pretensões de cientificidade. O jesuíta e inventor alemão Athnasius Kircher proclamou ter decifrado os hieróglifos, o que não era verdade, mas defendeu, pela primeira vez, a tese correcta de que existia uma conexão entre as antigas linguagens egípcia e copta. Sustentou ainda que Moisés seria a lendária figura de Hermes Trimegisto e, em Oedipus Aegiptiacus, de 1652, abraçou o hermetismo, considerando que os hieróglifos eram uma linguagem cifrada que continha verdades ocultas, mas retumbantes, escondidas durante séculos da comum humanidade. Não se tratou, longe disso, de uma corrente de pensamento somente cultivada por um punhado de lunáticos, mas, ao invés, de uma linha muito em voga nos séculos XVII e XVIII, que marcaria profundamente os rosa-crucianos e os maçons, que ainda hoje adoptam várias simbologias inspiradas no Egipto faraónico, na miragem da fulgurante ex orient lux, "a luz que vem de Oriente", prenhe de sabedoria e mistério..Entre 1500 e 1650, os relatos de viajantes pelo Egipto não chegaram à meia-dúzia. No século seguinte, foram mais de cinquenta, a maioria dos quais da autoria de franceses, com destaque para o jesuíta Claude Sicard, missionário na Terra Santa, que, além de ter sido o primeiro europeu a localizar Tebas e a identificar as ruínas de Karnak e Luxor, elaborou em 1722 o primeiro mapa do vale do Nilo produzido no Ocidente, um levantamento exaustivo em que todos os nomes das terras foram traduzidos do árabe para o francês e que teve fundo impacto na Europa das Luzes, desbravando o caminho a Napoleão e, antes dele, a outros visitantes, como o bispo inglês Richard Pococke, estudioso dos glaciares e autor de Description of the East, de 1743, merecedora de encómios de Gibbon, e o capitão naval dinamarquês Frederik Norden, que ao serviço de Cristiano IV produziria Voyage d"Egypte et de Nubie, de 1755. Aos poucos, o Egipto deixava de ser um destino exótico para viajantes hedonistas e ociosos, convertendo-se num objecto de estudo e ciência ou em pretexto para a defesa anticlerical de um humanismo ateu, como sucedeu com Les Ruines, ou méditations sur les révolutions des empires, obra dada à estampa em 1791 por Constantin-François Chasseboeuf, conde de Volney, a qual se inseria de pleno no espírito revolucionário da época e na visão maçónica de felicidade terrena que encontramos nas óperas de Zaide e A Flauta Mágica, de Mozart, fortemente impregnadas de simbologia maçónica e faraónica..A expedição de Napoleão ao Egipto foi o culminar de um sonho antigo (já em 1672, Leibniz propusera que a França anexasse o país), que surgiu, por um lado, como uma tentativa de equilibrar, do ponto de vista geopolítico e simbólico, o domínio da Índia por Inglaterra, perdido pelos gauleses na sequência da Guerra dos Sete Anos, e, por outro lado, como um projecto para consolidar um império comercial no Mediterrâneo, baseado nas rotas que os franceses há muito haviam estabelecido no norte de África. "O Egipto foi uma província do Império Romano, agora deve tornar-se uma província da República francesa", proclamou Talleyrand numa exposição dirigida ao Directório em 1798, que de imediato autorizou a campanha militar, preparada em grande segredo por Bonaparte, já aureolado pelo sucesso de Itália..A esquadra, a maior a chegar ao Egipto desde os tempos da Roma antiga, saiu do porto de Toulon em 19 de Maio de 1798 e, com um dispositivo impressionante (treze navios, 42 fragatas, 130 embarcações de transporte, 45 mil soldados, 10 mil marinheiros), conquistou Alexandria logo na primeira manhã de combate. Três semanas depois, Napoleão ganhava a decisiva Batalha das Pirâmides e a 25 de Julho entrou no Cairo em triunfo. Foi sol de pouca dura. Dias depois, a 1 de Agosto, o almirante Nelson aniquilava a armada francesa em Aboukir, deixando os franceses encurralados no deserto..Mas, se a campanha egípcia se saldou por um desastre militar a todos os níveis, foi um extraordinário triunfo simbólico e científico: Bonaparte entrou no interior da Grande Pirâmide de Gizé, onde pediu que o deixassem sós na câmara real, mimetizando Alexandre, o Grande, em face do oráculo de Siwa; e, mais decisivamente, a expedição foi integrada por 151 cientistas, que procederam a uma descrição exaustiva de monumentos e antiguidades e tornaram França a pátria da egiptologia. Entre muitos outros feitos, o levantamento realizado por Jacques-Marie Le Pére no golfo do Suez seria decisivo para o projecto do canal, que, muitos anos depois, seria empreendido por Lesseps e por um outro imperador napoleónico, Napoleão III..Logo na altura, ficou patente que a expedição científica era, acima de tudo, uma empresa política, ou geopolítica, através da qual França pretendia firmar-se na Europa e no mundo como a rainha do saber e a imperatriz das artes e letras. Não por acaso, quando os britânicos entraram pelo território, em Março de 1801, elegeram como um dos seus alvos os egiptólogos gauleses, que ora se renderam, ora escaparam por um triz para Paris. Passados oito anos da campanha de Bonaparte, um quarto dos seus 151 cientistas tinha desaparecido: cinco morreram em batalha, outros cinco foram assassinados, dez foram vitimados pela peste, cinco de disenteria, outro afogou-se, cinco morreram na Europa em resultado de doenças ou males contraídos no vale do Nilo. Ainda assim, e além das centenas ou milhares de objectos trazidos para o Louvre, França não perdeu a hegemonia cultural no Egipto, mesmo quando era esta questionada por personalidades lendárias como Giovanni Battista Belzoni (literalmente um gigante, tinha dois metros de altura!), um italiano nascido em Pádua que, após ter feito carreira no circo (na qual chegou a actuar em Portugal, em 1812), se converteu num aventureiro e negociante de antiguidades egípcias, a quem se deve a descoberta da entrada na pirâmide de Quéfren - e a quem Inglaterra deve milhares de preciosidades, com destaque para o colosso de Ramsés II ("jovem Mémmon"), hoje no Museu Britânico..Ao contrário do que muitos julgam, Jean-François Champollion não fez parte da campanha de Napoleão no Egipto, tendo conseguido decifrar a escrita hieroglífica da Pedra de Roseta graças, isso sim, aos seus prodigiosos e geniais dotes de filólogo, de que dava mostras desde criança. Em conjunto com os trabalhos do seu rival britânico Thomas Young, o contributo que Champollion deu para a egiptologia - e para a identidade nacional do Egipto, note-se - é absolutamente ímpar, podendo dizer-se, sem receio de exagero, que a histórica comunicação que fez à Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, em 27 de Setembro de 1822, intitulada Lettre à M. Dacier, foi o grande momento de viragem naquele campo de estudos..No seu tempo, o Egipto era dominado por Mohamed Ali Paxa, que governou o país durante décadas, de 1805 a 1848, e que levou a cabo um avassalador programa de modernização do país, assente no aumento das áreas de cultivo e na indústria, com militante desprezo pelo passado antigo. O património dos faraós, tido por um empecilho e por sinal de vergonha, ora foi vendido ao estrangeiro em busca de recursos financeiros, ora foi demolido e reutilizado em novas obras, públicas e privadas, ora foi votado ao esquecimento e à incúria, quando não alvo de basta pilhagem e ladroagem. Entre 1810 e 1828, perderam-se treze grandes templos e, em 1822, um templo na ilha de Elefantina, em Assuão, foi desmantelado, usando-se as suas pedras para edificar silos e armazéns. O grau de devastação provocado por Mohamed Ali Paxa, um homem que chegara a instar que as pedras das pirâmides de Gizé fossem utilizadas na construção de barragens, assumiu tais proporções que abalou as academias e as cortes da Europa, as quais logo lançaram programas de emergência para salvar o que restava de milénios de memória..No meio de tudo isto, as províncias gregas do Império Otomano revoltaram-se em 1822, na mira da independência, e, com os tumultos entre turcos e gregos a alastrarem até Constantinopla, a Grã-Bretanha, a França e a Rússia tomaram o partido dos helenos. Em troca da promessa da ilha de Creta, Mohamed Ali Paxa, que militarizara o país em larga escala, alinhou com o sultão otomano, o que valeu o afundamento de toda a armada egípcia na Batalha de Navarino, em 1827, e uma nova entrada de tropas estrangeiras no vale do Nilo. Ali Paxa, cuja política expansionista e belicista (campanhas da Arábia de 1811-1818; conquista do Sudão, em 1820-1824; guerras da independência grega, de 1821-1829; guerra egípcio-otomana de 1831-1833) o obrigou a entrar em permanentes jogos político-diplomáticos, apercebeu-se então do valor estratégico das antiguidades dos faraós, que usou frequentemente como arma negocial ou oferta de boa vontade. Os dois obeliscos do templo de Luxor foram prometidos a Inglaterra, mas acabaram oferecidos a França: um deles está hoje na Praça da Concórdia; em 1981, Mitterrand declarou que o seu país renunciava a reclamar o outro, que permanece no Egipto..Cognominado "pai do Egipto moderno", Ali Paxa, um mercenário albanês que, após uma sangrenta guerra civil, ocupara o vazio de poder aberto pela saída das tropas de Napoleão, conseguiu tirar da miséria milhares ou milhões de egípcios (em 25 anos, a população aumentou de 2,5 para 4,5 milhões), como foi reconhecido pelos egiptólogos que visitavam o país, como o grande John Gardner Wilkinson, o qual, entre outras proezas, procedeu à datação segura das pirâmides de Gizé. Em 1831, Benjamin Disraeli, então com 27 anos, viajou até Tebas, sendo apenas um dos muitos que à época descobriram o Egipto como destino turístico ou ponto de passagem para outras paragens; na década de 1830, de maior estabilidade política, aumentou dez vezes o número dos que aí faziam escala rumo à Índia, reforçaram-se as ligações marítimas inglesas vindas de Malta e Gibraltar, floresceram os hotéis no Cairo. Samuel Shepheard abriu em 1841 o Hotel des Anglais, que mais tarde levará o seu nome - Shepheard"s -, e em cuja clientela se incluíram nomes de guerra como Rommel e Churchill, mas também um jovem de 23 anos, Eça de Queiróz, que sobre essa viagem publicaria quatro crónicas nas páginas deste jornal, em Janeiro de 1870..Em 1829, Champollion exortara Mohamed Ali Paxa, vezes sem conta, a proteger o património cultural do Egipto e, após muitas resistências, seis anos depois foi finalmente aprovada a primeira legislação protectora. Mais ainda, e como assinala Toby Wilkinson no livro atrás citado, apesar das muitas antiguidades que de lá trouxeram, foram os europeus que insistiram para que se formasse uma colecção nacional e se criasse um museu no Cairo. O primeiro que foi erguido, o Antiqakhana, no distrito de Azbeakeya, dirigido pelo imã Tahtawi, degradou-se ao fim de poucos anos, foi pilhado e devastado e, duas décadas depois, o que restava de um amontoado de múmias putrefactas tinha desaparecido completamente (as peças sobrantes foram oferecidas em 1855 ao arquiduque Maximiliano da Áustria, como presente diplomático). Enquanto isso, continuavam a cair monumentos, outros a serem destruídos pelas autoridades, chegando-se a um tal grau de destruição que o cônsul americano no Cairo, George Gliddon, não hesitou em escrever uma carta violentíssima a Ali Paxa, acusando o seu governo de bárbara negligência. Se, em muitos casos, sobretudo em tempos mais recuados, tinha havido pilhagens e saques por parte dos europeus, noutras situações, cada vez mais frequentes, procurava-se salvar património que doutro modo teria desaparecido. Aliás, a maioria das peças existentes nos museus da Europa foi obtida por compra, por oferta ou nos termos da legislação da época, que garantia uma parcela do espólio a quem fizesse e financiasse as escavações. As outras, obtidas por meios ilícitos à luz do direito vigente na altura, deverão ser restituídas no quadro de uma convenção internacional que regule a devolução de obras ilegalmente esbulhadas..Quanto ao Antigo Egipto - e falamos apenas e tão-só do Antigo Egipto -, importa também reconhecer que, goste-se ou não, foram os europeus que primeiramente o estudaram, que fundaram a egiptologia, que decifraram a linguagem dos hieróglifos, que descobriram e conservaram monumentos e objectos que são património de toda a Humanidade. De resto, e curiosamente, a ideia de musealizar o passado foi uma invenção europeia, pelo que a existência de museus no Cairo é o produto de uma "apropriação cultural", como agora se diz. De facto, se os egípcios quisessem adoptar uma forma verdadeiramente egípcia, autenticamente original e nacional, de lidar com o tesouro de Tutankhamon, uma forma que realmente respeitasse o faraó e o seu passado, deveriam devolvê-lo à terra e fechar o seu túmulo para todo o sempre. Bem vistas as coisas, dissecar as múmias ao microscópio ou exibir os espólios funerários dos antigos monarcas, atraiçoando o propósito que os norteou, a crença religiosa que os motivou, é supor que nós, no presente, com a ciência e o monoteísmo, somos mais avançados do que eles, os antigos, que acreditavam num sem-fim de deuses e no renascimento das almas. A ideia de "superioridade cultural" não animou apenas o domínio racista de uns povos sobre outros; anima também, e muito, a forma com que lidamos com as épocas pretéritas, tidas por mais atrasadas. Neste "colonialismo do passado", que o iluminismo e o cientismo positivista muito fomentaram, tratamos os faraós do Egipto ou as damas da Idade Média com a mesma altivez distanciada com que outrora lidámos com os aborígenes ou com os esquimós. Será isso justo?.Portugal, como sempre, é o parente pobre nestas discussões. Pese o esforço admirável de um punhado de académicos, a nossa primeira expedição arqueológica ao país só teve lugar em 2000, com 200 anos de atraso sobre os outros europeus. Em 1924 e em 1928, no auge da glória, Howard Carter deu concorridas conferências em Madrid, a convite do duque de Alba, seu amigo. Por cá, enquanto isso, erguemos tão-só um café bonito, ao centro de Guimarães. Que depois foi destruído..Para o João Paulo Boléo, um homem generoso e culto..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.