Ninguém quer a verdade inteira

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A primeira coisa a fazer quando olhamos para uma guerra é assumir que ninguém tem a verdade inteira e que, mesmo que ela fosse possível, ninguém a queria. Para quê? O trabalho que dá ter de questionar as nossas próprias convicções, admitir que os "bons" também têm muita maldade, viver sabendo que apoiamos quem mata. Numa guerra, o que interessa, estando nós do lado dos sobreviventes, é a dimensão da destruição. Não há guerras OK (Zero Killed). Mais tarde ou mais cedo, todos seremos confrontados com as opções que fazemos. Por isso, mais vale estar sempre à procura da verdade, para que ela não nos surpreenda totalmente, quando já não for possível mudar a marcha.

Por exemplo, quando ouvimos o presidente Volodymyr Zelensky lembrar que "nem todos podem sair das cidades fustigadas pelo fogo russo, porque é preciso que elas continuem a ser ucranianas e tem de haver quem as defenda", queremos mesmo presumir que é verdadeira a acusação de Moscovo de que "a Ucrânia está a boicotar os corredores humanitários, impedindo a saída de pessoas que querem sair de Mariupol"? Queremos mesmo saber que há neonazis nas forças armadas da Ucrânia ou preferimos desvalorizar, ignorar mesmo, tendo em conta que é um problema comum a muitos outros países e que até em Portugal há forças de extrema-direita infiltradas nas forças de segurança?

Vamos assumir como verdade que, por cá, nove em cada dez pessoas está ao lado da Ucrânia, isso significa que qualquer coisa que o PCP diga em defesa da Rússia, mesmo que seja completamente verdade, será tomado como delírio. Mas se há dirigentes políticos que não estão nada interessados na verdade inteira, são os dirigentes comunistas. Não reconhecem a autocracia de Putin, não os incomoda a censura de Moscovo que manda prender quem se oponha publicamente à guerra e cala órgãos de comunicação social independentes. Mas também não falta quem tenha aplaudido a decisão anunciada pela presidente da Comissão Europeia de banir do espaço europeu o que considerou serem "máquinas de comunicação do Kremlin", referindo-se a órgão de comunicação social estatais da Rússia.

Esta guerra na Ucrânia é à escala mundial, pelos efeitos que tem na economia, e a maioria de nós já assumiu de que lado ficar. Logo, ninguém quer saber que o lado que apoia faz coisas com as quais não se pode concordar. Anda gasta a frase de que "na guerra, a primeira vítima é a verdade". É certo que ela nos tem aparecido cortada às postas, mais por defeito nosso, indisponíveis para construir o puzzle, para ouvir sem preconceitos o que o outro lado diz do nosso lado.

Falta dizer que querer a verdade inteira não significa procurar uma equidistância face a uma guerra que é criminosa e da responsabilidade da Rússia. Vladimir Putin é um autocrata perigoso, governa um povo que sente saudades do tempo da grande Rússia e isso é um cocktail muito perigoso de que a Europa já não conseguirá escapar. Depois desta guerra, estas gerações terão de viver com a ideia de que, afinal, por mais irracional que seja, a terceira guerra mundial pode acontecer. Esta verdade eu preferia não a saber.


Jornalista

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