Nem Marcelo promulga, nem o povo habita

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Com Marcelo Rebelo de Sousa a regra passou a ser a de não dar descanso ao Governo. Eufemisticamente, pode dizer-se que o Presidente deixou de levar o Governo ao colo, mesmo que, olhando de perto, qualquer um seja capaz de ver que é mais do que isso: quando o Governo tem de passar por Belém, lá está a perna de Marcelo esticada à espera de provocar um trambolhão.

A profunda divergência do inquilino do Palácio de Belém com o inquilino do Palácio de São Bento a propósito da habitação começou desde o momento em que o Governo apresentou as suas propostas para discussão pública. Começou logo com o prazo muito curto para essa discussão, alargado por pressão presidencial e continuou com críticas à falta de exequibilidade da maioria das medidas. Adivinhava-se o desfecho.

É certo que a montanha tem parido muitos ratos desde a afronta com a não-exoneração de Galamba, sendo a mais evidente a promulgação do diploma do Governo sobre a carreira dos professores, em que bastou uma alteração cirúrgica feita pelo Executivo para Marcelo fazer tábua rasa do arraso que deu ao Governo a este propósito. Um diploma que passou de fininho no meio de mais um arraso em que até Marcelo nos avisa que é inconsequente. A maioria parlamentar socialista vai reafirmar a sua vontade de resolver os problemas da habitação com aquele pacote legislativo e o Presidente vai ter de o promulgar. Enquanto a legislação regressa ao Parlamento para regressar a Belém, nem Marcelo promulga, nem o povo consegue a habitação a preços que não sejam pornográficos para o rendimento médio das famílias portuguesas.

O PS alega que é a garantia de equilíbrio no meio do radicalismo de toda a Oposição, mas nem inquilinos, nem proprietários se mostram satisfeitos com as soluções apresentadas. Sem bala de prata para resolver uma das mais graves crises sociais do país, os socialistas ficam entregues à sua própria sorte. Não procuraram fazer consensos nem à Esquerda, nem à Direita para resolver uma crise que é responsabilidade de todos e chegarão às próximas legislativas a terem de responder sozinhos, porque simplesmente essa foi a opção que fizeram.

Quando a crise chega à classe média isso significa que ela tomou proporções que já não permitem ignorar o problema, mas há décadas que o problema da habitação é ignorado. Ainda há milhares de pessoas a viver em condições miseráveis (bairros de lata e ilhas sem o mínimo de condições, nos arredores de Lisboa e do Porto, mas não só). Trinta anos depois de o Estado se ter comprometido a acabar com este flagelo, a maior descriminação continua a ser com a pobreza, que o poder, de Direita ou de Esquerda, quer escondida. Alguém acha que há um problema de habitação no Bairro da Serafina, em Lisboa, ou no Bairro do 2.º Torrão, em Almada?

Portugal, seguindo a tendência global, é um país cada vez mais polarizado, incapaz de construir pontes para resolver os maiores flagelos sociais. Quem está no poder vive depressões quando pressente o fim de festa, quem está na Oposição vive num estado de ansiedade, porque queria o poder para ontem. Alegando que querem resolver os problemas do povo, uns e outros vivem obcecados com os seus problemazinhos, porque uns e outros têm máquinas muito grandes que só sabem viver na sombra do poder. A habitação continuará a ser um problema por muitos anos, mesmo depois de Marcelo promulgar a legislação em causa, mesmo depois de o poder mudar de mãos.

Jornalista

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