No passado dia 3 de novembro na Assembleia da República, com poucos deputados presentes, Gonçalo Matias falou com a serenidade de quem acredita que é possível mudar o país sem o reescrever. O ministro da Reforma do Estado apresentou-se com a promessa de uma revolução tranquila, para simplificar, digitalizar e aproximar. Falou em “colocar o cidadão no centro da ação pública”, como se o país pudesse, de um momento para o outro, girar sobre o seu eixo administrativo e passar a funcionar. Não prometeu milagres, prometeu arrumações, com um tom de ato de fé.A imagem que quis deixar foi a de um Estado mais leve, menos obeso de papel e carimbos. A palavra “digitalização” tornou-se o seu refrão, com lojas do cidadão virtuais, carteira digital da empresa e 100 serviços online até 2030. No discurso houve entusiasmo tecnológico e a convicção de que bastará transformar processos em ecrãs para que o Estado se torne ágil. Enquanto se multiplicam as plataformas, ainda há filas nos balcões, senhas nos painéis, certidões que teimam em ser pedidas e comprovativos que se repetem. O ministro falou de interoperabilidade e de partilha de dados “só uma vez”, um princípio europeu que há muito tentamos cumprir. Falou de acabar com redundâncias, mas esqueceu-se dos Espaços do Cidadão, onde mediadores ajudam quem ficou de fora da era digital.São esses mediadores que traduzem o Estado para quem não domina o clique nem a senha. São eles que transformam a digitalização em inclusão, que fazem o país real chegar à nuvem. O ministro prometeu que ninguém ficará para trás, mas não detalhou como se formam, financiam e mantêm os mediadores de cidadania. É ali, nas freguesias, que a transformação digital se torna humana. Sem eles, a modernização pode ser apenas um novo muro feito de interfaces e passwords.O discurso teve também um tom de mea culpa: reconheceu “labirintos de burocracia” construídos ao longo de cinco décadas. Admitiu que se confundiu controlo com desconfiança, que se criaram entraves em nome da transparência. Mas o desafio agora é o equilíbrio, pois a simplificação não pode significar menos escrutínio. A celeridade é bem vinda, desde que não se torne terreno fértil para a opacidade. “A corrupção não resulta de processos rápidos, mas de processos lentos e pouco transparentes”, disse o ministro. Tem razão, mas a transparência não se mede pela velocidade, mede-se pela clareza e pelo acesso à informação.As metas são longas, os prazos elásticos e a execução dependente de fundos europeus. Fala-se de 2030, quando o cidadão quer apenas resolver o seu problema hoje. A reforma do Estado é sempre um exercício de paciência, pois cada passo técnico tem de ser acompanhado de uma mudança cultural e essa não se decreta. É preciso que os funcionários sintam que o seu trabalho melhora e que os cidadãos percebam que o esforço de adaptação compensa.No fim, o ministro concluiu que cada cêntimo deste orçamento será usado para tornar Portugal “mais justo, mais próspero, mais ágil e mais próximo dos cidadãos”. É uma frase bonita, mas a proximidade não se escreve, prova-se. Está no sorriso do funcionário que resolve, no email que chega a tempo, no formulário que já vem preenchido, no processo que se faz uma vez só. Está também no idoso que, acompanhado num Espaço do Cidadão, sente que não foi deixado para trás.A digitalização é inevitável e a humanização é opcional. E será aí que se decidirá o sucesso desta reforma: não na quantidade de aplicações criadas, mas na qualidade da relação entre o Estado e quem dele precisa. Porque um país verdadeiramente moderno não é o que mais cliques exige, é o que menos tempo rouba. Entre o clique e a fila, Portugal continua à espera de um Estado que finalmente aprenda a confiar em si próprio.Especialista em governação eletrónica