"Um padrão de homicídios de civis desarmados continuou num grande número de povoações depois de os bombardeamentos terminarem. (...) Na aldeia de Charebi, por exemplo, dois testemunhos diferentes sustentam que um grupo de 'ossetianos' [provenientes da Ossétia do Sul, região da Geórgia], soldados e civis, mataram dois aldeões nas suas casas. (...) Em Vanati, um professor foi assassinado na sua casa e a sua mulher, enfermeira, foi ferida. A seguir incendiaram a casa e deixaram-na lá dentro, morrendo queimada. (...) Em Avnevi, um homem foi morto quando recusou a entrada de saqueadores na sua casa.".A descrição é de um relatório da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa sobre a situação na Geórgia no seguimento da invasão russa de 2008, que em cinco dias ocupou 20% do território daquele país, desde 1991, como a Ucrânia, independente por via da dissolução da URSS. A invasão, de acordo com as estimativas, terá causado 412 mortes entre militares, polícias e civis, a destruição de 35 mil casas e a deslocação de cerca de 26 mil habitantes da zona ocupada, e culminou no reconhecimento pela Rússia da independência da Abecásia e da Ossétia do Sul, independência que não é reconhecida pela comunidade internacional, à exceção de meia dúzia de países - incluindo Cuba, Síria e a Bielorrússia..Segundo a Human Rights Watch, "a violência deliberada contra civis começou logo a seguir à retirada das tropas georgianas da Ossétia do Sul e continuou em ondas nas semanas que se seguiram; o falhanço das forças russas para assegurar a proteção dos civis nos territórios sob o seu controlo foi persistente (...). A Rússia era responsável mas não tomou quaisquer medidas em favor de pessoas sob a sua proteção, incluindo prisioneiros de guerra, vários dos quais foram executados ou torturados, maltratados ou sujeitos a tratamento degradante pelas forças da Ossétia do Sul, por vezes com a participação das forças russas.".Testemunhas ouvidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), no qual a Geórgia apresentou, logo em 2008, queixa contra a Rússia, relataram que após o bombardeamento da terra onde viviam e de as tropas russas a ocuparem, estas em conjunto com as da Ossétia do Sul tinham saqueado e incendiado casas. Uma das testemunhas disse que foi perseguida pelos ocupantes, juntamente com outro habitante, que acabou por ser morto. Quando voltou à sua povoação, a meio de agosto, a mesma testemunha viu membros das milícias ossetianas a espancar até à morte uma conhecida de 67 anos. Outra testemunha, esta residente na já citada Vanati, afirmou que depois de a povoação ter sido bombardeada a 7 de agosto e da entrada dos russos a 9, houve pilhagem e incêndio de casas generalizados. Todas as casas, exceto as que tinham sido marcadas com tinta branca, foram queimadas..Este mesmo tipo de violações de direitos humanos estão descritos na apreciação preliminar, de janeiro de 2016, do Tribunal Criminal Internacional, dizendo respeito aos crimes de guerra alegadamente cometidos na Geórgia (e cujo julgamento ainda não terminou). Esta descreve um ataque persistente a civis na sequência da ocupação russa e seguindo o seu avanço, tendo como alvo sobretudo "georgianos étnicos" num padrão de matança deliberada, agressão e ameaças, detenção, saque e incêndio de lares. "O nível de organização do ataque é notório pela destruição sistemática de casas de georgianos, o uso de camiões para transportar os bens roubados, e o uso de guias locais para identificar alvos específicos. O que tinha valor era retirado das casas e quintas antes de serem queimadas", lê-se no documento citado. Que prossegue: "Estes ataques foram supostamente desencadeados com vista a forçar a saída dos georgianos étnicos do território da Ossétia do Sul para mudar a composição étnica do território, cortar os elos ainda existentes com a Geórgia e assegurar a independência. (...) A informação indica que nuns casos as forças russas participaram ativamente, enquanto noutras assistiram passivamente. Por exemplo, quando perguntado por que motivo as forças russas não ajudavam a apagar os fogos, um oficial russo terá dito que aquelas eram as ordens.".Em janeiro de 2021, o TEDH condenou a Rússia por várias violações de direitos humanos, incluindo tortura, tratamentos degradantes, homicídio, sequestro, destruição de propriedade e expulsão de georgianos das suas terras. Também determinou que a Rússia está a ocupar território da Geórgia desde 2008 e que nada fez para investigar violações de direitos humanos nele ocorridos..A decisão foi vista como demonstrando que as pretensões da Rússia de se apresentar como uma pacificadora e mediadora na zona são uma mistificação, e apontada como relevante para as pretensões da Ucrânia no mesmo tribunal (há uma série de queixas da Ucrânia contra a Rússia no TEDH desde 2014, pela invasão e ocupação da Crimeia e pela sua atividade no Donbass)..Claro que o TEDH levou 13 longos anos a analisar a queixa da Geórgia, que a Rússia se está nas tintas para esta condenação e que ninguém deste lado da Europa, ainda mais a meio da pandemia de COVID, deu muita atenção a um assunto que já em 2008 não despertara muito interesse - não vale a pena fingirmos que não achávamos que aquilo que a Rússia fazia nos domínios da antiga URSS não dizia grande respeito ao resto do mundo; não é só Putin que vê ali o seu império. Mas olhar agora para a descrição do que a Rússia fez ou deixou fazer na pequena Geórgia, de menos de quatro milhões de habitantes, serve pelo menos para não se poder dizer que não há precedente e que não estamos a assistir a uma sequela, à continuação de um plano, à confirmação de uma natureza. Não, isto não começou a 24 de fevereiro de 2022.