Não houve festa, pá, no país urbano-rural

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Se me perguntassem o que vai destruir a cavalgada do Chega rumo ao poder, além de um abalo para PS e PSD, responderia: partidos regionais. Estamos no princípio de uma enorme transformação política. É, por isso, tão contrastante esta ideia de um país aparentemente feliz consigo próprio - porque a Revolução foi extraordinariamente comemorada em Lisboa - sem a reflexão do que aconteceu praticamente em todo o país: qual festa?

Talvez haja uma razão para esta enorme diferença: além dos acontecimentos terem sido vividos ali, Lisboa é a nossa joia da coroa. O maior caso de sucesso do país. Só que, em simultâneo, cresceu a desigualdade económica entre o rendimento per capita em Lisboa versus o restante Portugal “urbano-rural”. Portugal falhou na tentativa de ser um país mais igual ao longo das suas fronteiras e isso tem um preço.

Quando só nos resta a esperança de exportar os nossos filhos e obedecer ao capital estrangeiro - porque perdemos literalmente os centros de decisão económica -, sobra pouco para nos orgulharmos. Nestes 50 anos do 25 de Abril estamos a comemorar, além do acesso generalizado à escola pública, a melhoria de infraestruturas que a União Europeia nos deu. E este milagre é em quase nada português.

Daí a avaliação marcelista: “Lento”, o país. Dúvidas: lento no conhecimento? No aumentar do rendimento? Na capacidade de se organizar para mudar? Marcelo menoriza o país agrícola, industrial, exportador, que infelizmente ainda gera valor modesto, com consequentes baixos salários, desprezando que chegar aos grandes mercados é tarefa árdua.

Talvez o Presidente tenha percorrido o país de lés-a-lés sem verdadeiramente compreender a lentidão de Portugal. E assim o humilha perante os jornalistas estrangeiros. Marcelo afinal gosta do povo urbano-rural da selfie e do abraço como o Vasco Santana gostava das tias na Canção de Lisboa.

Esse país urbano-rural gera, mesmo assim, empresas, pensadores e alguns homens competentes. O despedimento de Fernando Araújo, da Comissão Executiva do SNS, é ilustrativo do desprezo de uma certa elite por homens de trabalho. Um tipo com uma pronunciazinha estranha face ao arquétipo lisbonense e que não passa bem na televisão, tem o destino traçado. Mesmo que conheça, melhor que ninguém, o SNS.

Perguntemos, em contraponto: o que foi capaz de fazer a classe médico-política da capital quanto à sistemática desorganização dos hospitais da Região de Lisboa? Há algo que se compare à excelência de funcionamento do São João, Santo António ou dos Hospitais Universitários de Coimbra?

Outro exemplo: quando Carlos Moedas exige prioridade para o TGV Lisboa-Madrid, atravessando o deserto alentejano, em vez da linha Lisboa-Vigo, onde se concentram cinco milhões de pessoas, isto é o quê? Que tipo de visão para o país tem um homem que foi comissário Europeu da Inovação e hoje fala como um cacique local? Não está em causa fazer-se o Lisboa-Madrid, mas sim a prioridade - a capital, em primeiro. Como sempre.

Em conclusão: o Chega é tendencialmente antidemocrático e tem no seu ADN a erosão do sistema. Já novas forças políticas regionais poderão ter outro tipo de genética, porque valorizam um sistema político onde têm voz. É a política a aproximar-se das decisões dos cidadãos, com objetivos concretos, listas de deputados com gente próxima, ideias para mexer com a vida das pessoas. A política da pólis - de todas as pólis, e não de uma ou duas. E isto é absolutamente necessário, porque enquanto o PIB per capita da região mais pobre do país for literalmente metade do da capital, falta cumprir este 25 de Abril.

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