"Não há soberania no isolamento"
Mergulhados no pessimismo, desvalorizamos algumas dinâmicas aceleradas pela pandemia. Uma das mais importantes está no aprofundamento da integração económica e política regional, capaz de funcionar como contraponto às desgarradas aventuras do soberanismo revivalista. Além disto, a pandemia tem consolidado, até ver, importantes dinâmicas que a precederam. Uma delas é a transformação das economias pela via da transição energética mais consentânea com as metas ambientais. Apesar da inflexão dos EUA de Trump, entretanto corrigida por Biden, ninguém com peso nesta discussão abandonou a prioridade climática. Pelo contrário, a pandemia veio expor a urgência da colocação do bem-estar no centro das decisões políticas e da credibilidade das negociações multilaterais. De certa forma, ganhámos espaço para calibrar uma proposta social alargada em detrimento da sofreguidão clássica pelos resultados económicos. É também este ajustamento que está na base dos planos expansionistas de recuperação nos EUA e na União Europeia, isto se alocados no tempo e no modo de forma certeira ao longo desta década. Os empedernidos espíritos soberanistas têm que lidar com isto: foram os passos conjuntos da integração regional que criaram as condições para responder a estes dilemas estruturais.
A aceleração tecnológica acaba por ser outro dos exemplos consolidados pela pandemia, com efeitos nos processos de integração. Sendo a digitalização por definição um processo transfronteiriço, e estando o inovador tecido empresarial totalmente alinhado com lógicas financeiras, de consumo e mão-de-obra qualificada em mercado global, seria ilógico tentar enquadrar estes fluxos numa grelha normativa que não resultasse de negociações comerciais e regulatórias que envolvessem o máximo de nações possíveis. Por outras palavras, a aceleração tecnológica global exposta com a pandemia tende a reforçar entendimentos regionais e inter-regionais, acordos de livre-comércio, pactos de regulação e governação do setor digital, e a procura concertada de mecanismos normativos que travem o livre-arbítrio do setor, garantam equidade fiscal e façam cumprir preceitos constitucionais comuns na defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. É isto que começa a estar em cima da mesa na agenda comum entre os EUA e a UE para lidar com os gigantes tecnológicos, prova do aprofundamento da integração regional, neste caso transatlântica, num pilar fundamental das sociedades contemporâneas.
Mas há mais exemplos da tendência integradora, para além desta cooperação reforçada transatlântica no campo tecnológico ou decisões tomadas na UE ao longo de 2020, na sua capacitação financeira para enfrentar a crise e na fórmula federalizante que está na base da decisão política para gerar esses recursos. O momento fragilizador asiático e a cadência da recuperação chinesa acabaram também por acelerar a conclusão de oito anos de negociações entre 15 nações da região (entre elas a China, o Japão e a Austrália), que assinaram um acordo de livre-comércio em novembro do ano passado. Para além de ser o maior do mundo em PIB agregado (30% do total mundial) e pessoas abrangidas (um terço da população global), abrange o setor financeiro, tecnológico e das telecomunicações. O sinal político é claro: enquadrar legalmente o potencial económico da integração regional mais pujante da economia mundial e, ainda, acomodar a China e o seu exponencial mercado. Acresce a isto a necessidade de controlar numa geografia mais domável as cadeias logísticas e produtivas de bens essenciais, cuja pandemia revelou terem de obrigatoriamente incluir toda a cadeia farmacêutica e hospitalar. Em sentido contrário, tem sido apontado como razão para a fragilidade da América Latina e de África no atual quadro de vacinação maciça o facto de terem instrumentos de integração regional pouco ativos ou aprofundados, o que lhes dá menos poder e escala negocial.
Pode parecer inusitado, mas isto leva-me ao grande discurso que Mário Draghi proferiu há dias no Senado italiano. O novo presidente do Conselho de Ministros, sempre parco em palavras, escolheu mais uma vez as certas e, por isso, garante-lhes um peso acrescido, um auditório mais amplo e a temporalidade preservada. Foi assim no BCE em defesa do euro, pode ser assim em Roma em defesa da oportunidade de ouro para reformar Itália ("Nova Reconstrução"), equiparando a responsabilidade histórica à dos governos italianos no pós-Segunda Guerra Mundial. A verdade é que o sucesso de Itália é uma parte fundamental do sucesso da recuperação europeia, quanto mais não seja porque garantiu quase um terço de todo o fundo de recuperação disponibilizado pela UE. Não desvalorizemos, porém, a dimensão política. "Sem Itália não existe Europa, mas fora da Europa há menos Itália. Não há soberania no isolamento", disse Draghi, antes de ser ovacionado de pé por quase todos os senadores, indicando na parte final do discurso a "relação com a França e a Alemanha" como estratégica para aprofundar a integração europeia. Mais do que o regresso simbólico ao trio fundador das comunidades e, mais tarde, da moeda única, é um sinal da UE pós-Brexit. Roma sabe que a continentalização da política europeia é irreversível e que a disfuncionalidade de um eixo franco-alemão excessivamente poderoso não é do interesse de ninguém. O envelope financeiro que Itália garantiu para a década dá-lhe a oportunidade de reinventar o seu papel no aprofundamento da integração europeia, seja na governação da zona euro ou noutros círculos de cooperações reforçadas. É um trio desequilibrado, mas não deixa de ser o trio de poder na Europa.
Esta dinâmica é importante para outros Estados membros, como Portugal. Acompanhar este trio de forma bilateral ou mais ampla tem sido estratégico desde a adesão. Seria um erro reverter o passo, o que temos é de reforçar relações e fóruns com cada um deles. Mas soubemos sempre equilibrar o poder deste "diretório" com alianças e aproximações a potências exteriores ao nervo continental, Reino Unido e EUA à cabeça, nos últimos anos a China e, de certa forma, a Índia. Não é à toa que lutámos por uma cimeira entre esta e a UE neste semestre a que presidimos ao seu Conselho. O regresso da América de Biden às soluções transatlânticas, expresso ontem na reunião do G7 e na Conferência de Segurança de Munique, reforça a oportunidade que Lisboa tem de recalibrar a sua política externa. O potencial com Washington continua a ser imenso, o mesmo com Nova Deli, mas precisamos de assegurar a intocabilidade dos elos com Londres e sermos bastante mais hábeis com Pequim.
Se as alianças estratégicas de um pequeno Estado como Portugal se definem pela estabilidade dos seus princípios e interesses, a diversificação das suas relações acaba por determinar a forma como ultrapassa o seu grau de vulnerabilidade e fragilidade conjunturais. A pandemia veio acelerar a necessidade de acautelarmos com outra capacidade estes finos equilíbrios, reforçando a diplomacia como política pública prioritária. Os que o fizerem mais rapidamente estarão na linha da frente da resolução conjunta dos grandes dilemas globais.
Investigador