Nagasaki, cidade luso-japonesa de 1571
Quando primeiro vi Nagasaki, de longe, lembrou-me Lisboa. Uma cidade espalhada pelas encostas, virada a Sul para uma grande baía, que se estreita num "gargalo" como o que separa Almada de Alcântara.
João Paulo Oliveira e Costa, que me iniciou na história riquíssima de Nagasaki, explicou-me que Nagasaki quer dizer Cabo Delgado ou Ponta Delgada e de facto nos mapas antigos é evidente um cabo que avança sobre o mar. A história de Nagasaki começa por este cabo, uma forma que permitia, nessa ponta, dar fundo de mar ao calado dos navios, ou melhor às naus vindas de Portugal e Goa.
A chegada da nau do trato (kurofune), assim se chamava a nau carregada de produtos para venda vindos de Lisboa, Goa e Macau, era um acontecimento tão rentável que era preciso dar-lhe as melhores condições para fundear e acostar. Assim, 28 anos depois da nossa chegada ao Japão, nasceu Nagasaki, a cidade porto dos portugueses.

Os japoneses relatam a negociação que antecedeu a criação de Nagasaki desde 1568. Onde havia umas pequenas cabanas de pesca nasceu uma cidade nova desenhada e ampliada sob o signo da globalização e do interesse mútuo entre duas culturas curiosas uma da outra. O negócio que a sustentava era assegurado pelos portugueses: "Logo na primeira viagem reconheceu-se em Liampo (Macau) a grande vantagem deste novo esquema comercial que ficou conhecido em Portugal como o Negócio da China, (até hoje) negócio muito rentável"1.
Nagasaki é o cenário estável deste negócio e Diego Pacheco, um padre que viveu e escreveu sobre Nagasaki, determina que em 1565 se iniciam as negociações entre o daimio japonês Omura Sumitada, convertido ao cristianismo com o nome D. Bartolomeu, e Cosme de Torres. Seis anos mais tarde é o arranque da cidade "que teve lugar sob o comando de Tomonaga Tshushima na Primavera de 1571"2.
Sobre o dinamismo que o negócio logo lhe imprimiu escreveu Kiichi: "Portugueses, clero estrangeiro, intérpretes, corretores, comerciantes chineses e espanhóis fizeram de Nagasaki a cidade internacional do Japão. Não há registo de uma portuguesa que tenha visitado Nagasaki, embora houvesse muitos mestiços. [...] Nagasaki não foi uma colónia, mas sim uma cidade aberta, um santuário, um centro de intercâmbio cultural entre o Oriente e o Ocidente. A história política e social de Nagasaki durante os seus primeiros cinquenta anos de existência ainda está para ser escrita e apresenta aspetos de grande interesse para o jurista e sociólogo."3
Os atores determinantes para a fundação de Nagasaki como porto oceânico foram cinco: Cosme de Torres e D. Bartolomeu negociaram para criar a cidade/porto e estabelecer os seus regulamentos, o piloto português Belchior Figueiredo reconheceu potencial da forma natural da baía de Nagasaki onde podiam ancorar em segurança as naus, Gaspar Vilela teve parte ativa na construção do porto de Nagasaki e nas igrejas que estruturavam o espaço urbano como marcas de uma identidade nova e Luís Almeida como médico e cirurgião atraía muita gente e veio evangelizar a nova cidade. Destes cinco só um não é português e vamos dar voz a Luís Frois, o repórter jesuíta que lá viveu nessa década de 70, "E tomando hum piloto com alguns companheiros, de propozito andou o Padre correndo aquella costa e sondando as entradas para descubrir o que melhor parecesse. E achando para isto ser apto e conveniente o porto de Nangazaqui, fazendo primeiro os consertos necessarios com Dom Bartholomeo, começou o Padre e os christãos, que andavão com suas familias às costas morando à sombra da nao, a ordenar-lhe alli povoação de assento e morada certa". 4

Carta do porto de Nagasaki - Museu de Marinha.
A partir destes registos históricos comparei o antigo traçado da cidade (antes da bomba atómica de 1945) e o mapa de Nagasaki do seculo XVII pertença do Museu da Marinha em Belém. Evidenciam-se os traços portugueses da cidade e as marcas da forma de construir cidades dos japoneses. Nagasaki descende destas duas linhagens que hoje em dia não se detetam in loco sem uma explicação e uma busca dos sinais. Mas eles estão lá.
Foi assim que registei 5 elementos espaciais nesta cidade que confirmam a sua genética luso-japonesa.5
Na Lisboa do século XVI, são elementos marcantes da cidade a sua forma natural e uma ocupação humana (1) em redor da magnífica baía de águas profundas como porto protegido das tempestades e naturalmente defendida por um gargalo que estreita o acesso à baía, (2) as colinas cobertas por edifícios, dispostos de forma orgânica em torno do castelo ou de conventos, construídos no seu topo e onde se acede por escadarias e ruas tortuosas, (3) os espaços públicos herdeiros da ágora para comércio e a grande praça do porto, locais de encontro aberto, herança greco-romano.
Do lado japonês identificam-se (4) as linhas de água que atravessam as cidades e que não são soterradas num sistema de esgoto subterrâneo, como acontece na herança romana de Lisboa. Pelo contrário os ribeiros com pontes marcam a cidade japonesa. A água é um elemento sagrado e em Nagasaki esse traço de sageza ecológica foi respeitado vendo-se ainda hoje na parte baixa da cidade e (5) a cidade em quadrícula na sua parte plana segue a geometria quadriculada, linhagem das cidades como Kyoto e Nara.
O charme de Nagasaki, planeado em conjunto por portugueses e japoneses, é um urbanismo de fusão em que se revelam os vestígios das duas culturas e que constitui também um exemplo de cidade em que as regras europeias se plasmaram num espaço urbano e num regulamento negociado.
Nagasaki foi, e é, uma cidade de sucesso cuja fundação em 1571 se reconhece ter vindo de fora de tal forma que em 2021 foi emitido um selo de correio pelo governo japonês representando a Nau do Trato e se comemoraram em toda a nação 450 anos da sua criação com essa imagem.
Arquiteta paisagista, professora da Universidade de Lisboa
1 França, José-Augusto. Lisboa - História Física e Moral. Livros Horizonte, Lisboa, 2008 p
2 Pacheco, Diego, The Founding of Nagasaki, Centro de Estudo Maritimos, Macau , 1989, p.14
3 Matsuda, Kiichi; The Relations between Portugal and Japan; Lisboa. Junta de Investigação do Ultramar e Centro de Estudos Históricos Ultramarinos. 1965. p. 37-42
4 Fróis, Luís. Historia de Japam:., 1565-1578. Editado por José Wicki. Vol. II. V vols. Biblioteca Nacional. Lisboa, 1981, pp.376-377
5 Castel-Branco, C. Paes, Margarida Fusion urban planning in waterfront cities. Nagasaki, a city planned by two cultures - Japan and Portugal - in 16th century. Bulletin of Portuguese Japanese Studies, Lisboa, Centro de História de Além-Mar, vol. 18/19, 2009