Na companhia de William S. Burroughs

Em 1978, em Nova Iorque, a obra do autor de Queer foi objeto de uma celebração muito especial, agora revisitada pelo cinema.
Publicado a

A herança literária de William S. Burroughs (1914-1997) desafia qualquer categoria artística ou filosófica em que tentemos encerrá-lo. Prova eloquente poderá ser o fabuloso Queer (2024), de Luca Guadagnino, baseado na obra homónima de Burroughs, por certo o filme mais radical - entenda-se: de uma beleza radical - que este ano chegou às salas portuguesas. Agora, reencontramos Burroughs num belo documentário, Nova ‘78, coassinado pelo português Rodrigo Areias e o americano Aaron Brookner - já apresentado no Doclisboa, passa hoje no Porto/Post/Doc (Batalha Centro de Cinema, 21h30).

No sentido mais básico, e também mais cinematográfico, Nova ‘78 documenta um acontecimento. A saber: a chamada Nova Convention, uma série de encontros/espetáculos - concertos, performances, conversas, etc. - que teve lugar em Nova Iorque ao longo de três dias de 1978 (30 nov., 1 e 2 dez.). Imaginado por Sylvère Lotringer, crítico literário francês, na altura sediado em Nova Iorque, o acontecimento foi concebido como um tributo a Burroughs, regressado aos EUA em 1974.

A partir dessa data, em grande parte graças ao apoio do amigo Allen Ginsberg, Burroughs foi superando a toxicodependência, aliás amplamente espelhada na sua escrita, nomeadamente em Queer (escrito em 1951-53, mas só publicado em 1985). Com ecos da chamada Nova Trilogy (The Soft Machine, The Ticket that Exploded e Nova Express), lançada entre 1961 e 1967, os eventos da Nova Convention recordam-nos um Burroughs admirado como verdadeiro guru da chamada contracultura da década de 1970 (o termo “contracultura” tinha sido cunhado em 1969 pelo escritor e filósofo Theodore Roszak). Para os seus pares, através da crítica da sociedade pós-industrial e do sistema legal de monitorização das diferenças individuais, Burroughs justificava mesmo a aura de “filósofo do futuro”.

Memória de 1978: William S. Burroughs nas ruas de Nova Iorque.
Memória de 1978: William S. Burroughs nas ruas de Nova Iorque.

Nesta perspetiva, o mínimo que se pode dizer da Nova Convention é que foi um fascinante painel de contrastes, mesmo quando (ou sobretudo porque) a organização não foi um prodígio de rigor logístico. Podemos, por exemplo, descobrir Philip Glass num solo (minimalista, pois claro) no seu sintetizador, Merce Cunningham numa performance com John Cage, Laurie Anderson numa exposição prospetiva sobre o futuro (com a voz eletronicamente modificada) e o próprio Burroughs em várias intervenções.

A apresentação inicial dos acontecimentos está a cargo de Terry Southern, companheiro da Geração Beat que, ao longo da década de 60, tinha participado na escrita de vários argumentos para cinema, incluindo Dr. Strangelove (1963) e Easy Rider (1969). Com alguma bizarra ironia, Patti Smith assume a tarefa de dizer aos espetadores que Keith Richards, inicialmente anunciado, não irá aparecer... tendo sido “substituído” por Frank Zappa!

As imagens de Nova ‘78 foram registadas por Howard Brookner, tio de Aaron Brookner, ele que viria a realizar o documentário Burroughs: The Movie (1983). Agora, Aaron e Rodrigo Areias trabalham essas imagens começando por evitar a facilidade de uma voz off que se limitasse a “descrever” o que estamos a ver. Na sua multiplicidade de acontecimentos, a Nova Convention renasce, assim, como cerimónia de uma criatividade (veja-se e ouça-se a vibração de Ginsberg a declamar um dos seus poemas) em tudo marcada pelas convulsões do seu tempo (há mesmo algumas palavras contundentes de Burroughs sobre a revolução dos Ayatholas no Irão). Dito de outro modo: a ideia de uma contracultura não pode ser transposta de um contexto para outro, mas a sua herança contém uma energia contagiante.

Jornalista

Diário de Notícias
www.dn.pt