Na companhia de Gilles Deleuze

Publicado a

São assim as efemérides. Iludem-nos com a hipótese de impedir a voragem do tempo, como se fosse possível olhar o mundo feito imagem fixa da nossa própria complexidade. Assim acontece com o centenário de Gilles Deleuze: nascido a 18 de janeiro de 1925, em Paris, o filósofo francês surge na atualidade do seu país através de um painel feito de publicações, reflexos, evocações, pensamentos e palavras-chave (não a filosofia como “árvore”, mas como “rizoma”, etc.).

Num número especial da Philosophie Magazine (uma bela encarnação do que possa ser uma revista popular sobre filosofia), Sven Ortoli, chefe de redação, apresenta Deleuze num editorial significativamente intitulado Linha de fuga. E recorda uma máxima daquele que foi também um “professor carismático”, condensando uma visão feliz dos cursos universitários que protagonizou. A saber: trata-se de dar aulas sobre “o que procuramos e não sobre o que sabemos”.

'O Eclipse' (1962): Alain Delon e Monica Vitti.
'O Eclipse' (1962): Alain Delon e Monica Vitti. FOTO: D.R. / Arquivo

Deleuze foi um fascinante pensador dos pensamentos que herdou - o seu livrinho sobre Nietzsche, cuja 1.ª edição tem este ano o seu 60.º aniversário, é um pequeno prodígio de celebração de uma filosofia que criou “uma nova imagem do pensador e do pensamento”. Além de que, claro, o incontornável Anti-Édipo, escrito com Felix Guattari, surgido entre nós pouco depois do seu aparecimento em 1972 (numa tradução de Joana Varela e Manuel Maria Carrilho, com chancela da Assírio & Alvim) permanece como espelho plural de um tempo de ressaca dos anos 60, assombrado pela urgência de repensar as categorias convencionais do “individual” e do “coletivo”.

Não tenho a intenção, ainda menos a capacidade, de resumir a pluralidade da sua obra imensa. Em todo o caso, permito-me sublinhar a importância de Deleuze na nossa relação com as práticas artísticas, em particular a pintura e o cinema - no primeiro caso, lembro a recente edição dos seus cursos de 1981 (Sur la Peinture, Les Éditions de Minuit, 2023), além do estudo dedicado a Francis Bacon, Lógica da Sensação (edição Orfeu Negro, 2011); no segundo, é inevitável citar A Imagem-Movimento e A Imagem-Tempo (disponíveis em edição da Documenta, 2015-16).

De que falamos quando falamos daquilo que vemos numa imagem? E se nos faltarem as palavras?”

Escusado será dizer que Deleuze resiste a qualquer lugar-comum mediático sobre uma eventual “reprodução”, intocável e inquestionável, do mundo à nossa volta - essa é apenas a mercadoria da televisão mais medíocre. O que, entenda-se, não exclui o trabalho do pintor de alguma relação com o “caos” do mundo em que vivemos. Em Sur la Peinture, ele reconhece-lhe mesmo uma singular tarefa: “(…) a pintura poderá encontrar a sua razão de ser na medida em que não se limita a resistir ao caos, mas enfrenta-o de muito perto para dele fazer sair - arrisquemos a palavra - uma espécie de ordem possível moderna.” Daí o valor do artista, não como produtor de “mensagens”, mas como aquele que “acrescenta sempre novas variedades ao mundo” - esta frase pertence a outro livro escrito com Guattari, O que é a Filosofia? (Editorial Presença, 1992).

O seu maior inimigo é o cliché e esse supremo infantilismo político que nos leva a encarar tudo e todos a partir de uma “máquina binária” (penso, para mim, nas oposições corpo/espírito, esquerda/direita). De tal modo, que no seu limite mais radical - ou, se quiserem, mais poético -, cada imagem pode e deve ser pensada para lá daquilo que “mostra”. Como Deleuze escreveu a propósito de Monica Vitti e Alain Delon no filme O Eclipse (1962), de Michelangelo Antonioni, “a música que envolve os amantes no parque provém de um pianista que não se vê, mas que está ali ao lado”. O que nos faz desejar um cinema que não duplique o mundo, antes o amplie até já não ser possível recobri-lo com as palavras que aprendemos.

Jornalista

Diário de Notícias
www.dn.pt