Na cabeça dos nossos filhos

Publicado a
Atualizado a

Num final de tarde de um dia cinzento de primavera, em 2005, percorria de bicicleta as ruas junto a um dos canais principais de Amesterdão - o Prisengracht - quando de repente tudo parou e ficou em silêncio. Como num filme. As pessoas saíram dos seus carros e ficaram imóveis, quem estava de bicicleta parou, os barcos interromperam o seu curso, nos restaurantes e bares a música foi desligada.

Durante dois minutos arrepiantes só os sinos e o crocitar dos corvos se ouviu, nada mais. E eu ali, já com os pés no chão e as mãos a segurar a bicicleta enferrujada, sem ideia do que se passava à minha volta apenas mimetizava os outros: quieto e em silêncio. Quando regressou a normalidade abordei o ciclista mais próximo, e ainda a sussurrar perguntei sobre o que se passava. Explicou-me que todos os anos naquele dia, 4 de maio, os holandeses fazem dois minutos de silêncio em memória das vítimas das guerras e que no dia seguinte, 5 de maio, comemoram o fim da ocupação nazi. De regresso à marcha pensei, sobretudo, como a geração de jovens dos anos 1930 e 1940, pais ou avós de quem me cruzava, se tinham tornado nazis ou colaboracionistas. Como foi possível irem atrás daquelas ideias? Como foram convencidos?

Entre essas perguntas, dei por mim a recordar um outro episódio, este passado em 1986, tinha 12 anos. Estava acompanhado pelo meu pai no Largo do Rato, em Lisboa, e vi passar muitas pessoas numa manifestação de apoio à campanha de Freitas do Amaral às eleições presidenciais desse ano. Lembro-me de, no meio da multidão, adolescentes - na altura mais velhos do que eu - contentes, a sorrir com o slogan “Para a Frente Portugal” estampado nas t-shirts e a hastear bandeiras de Portugal, umas republicanas e outras monárquicas. Mas detive a atenção noutra bandeira, diferente. Perguntei ao meu pai o que representava, e ele sem olhar para mim disse, com a voz zangada, quase a ralhar: “É a da Mocidade Portuguesa!”.Ora, para quem não se recorda, a Mocidade Portuguesa foi uma espécie de juventude hitleriana do tempo do Estado Novo. Fundada por decreto em 1936, foi uma organização de inspiração militar para rapazes e raparigas, dos 7 aos 25. Essa instituição que pregava o “Deus, Pátria, Família” e que nos primeiros anos usava a saudação fascista, utilizada pelos nazis e pelos seguidores de Mussolini, em Itália, recebeu milhares de jovens portugueses de então. Uns obrigados e outros por opção e convicção ou pressão familiar, outros ainda por necessidade - havia quem se juntasse à Mocidade para ter um par de botas decente para calçar no dia a dia, tal a pobreza do país. É possível imaginar como se moldaram as mentes daquelas crianças e como a ideologia fascista foi impregnada naquelas cabeças em formação. Mais uma vez, regressando aos meus pensamentos, como é que alguém pôde hastear aquela bandeira em 1986? Que saudosismo era aquele, escassos 12 anos depois do 25 de Abril?

Tudo isto partilhado, faço fast forward para o presente. Há dias, numa escola secundária de um subúrbio rico de Lisboa, no concelho de Oeiras, decorreu um debate sobre cidadania e democracia com representantes de vários partidos acompanhados das suas juventudes partidárias. Entre cerca de 600 alunos presentes alguns hastearam bandeiras do Chega - distribuídas pela juventude daquele partido momentos antes. Tudo isto provocou uma reação da diretora da escola a reprovar a “inusitada campanha” e a retirar as bandeiras do local, conforme noticiou a CNN Portugal. Mas houve mais. Quando o representante do partido de André Ventura começou a falar, foi aplaudido com entusiasmo por grande parte dos alunos. Tratou-se de um momento de rebeldia, exaltação e hormonas aos saltos, próprias daquelas idades. Uma tontice, dirão muitos. Mas a questão é mais profunda e grave. O Chega está a tocar nessa geração de uma forma muito rápida sem que nós, adultos, percebamos bem as possíveis consequências. Fá-lo de várias formas: desde a simples distribuição de merchandising aos mais jovens, nos sítios que estes frequentam, à criação e divulgação vídeos de fake news em parceria com youtubers ou ainda elementos do partido a fazer danças no TikTok. Parece tonto, mais uma vez, mas está a revelar-se eficaz. E nós, adultos, pais, tios, amigos, estamos um pouco alienados dessa realidade.

Não, o partido de Ventura não é nazi. Mas sim, o partido de Ventura é da direita populista com discurso redondo e facilitista e tem no seu meio muita gente que partilha de ideias xenófobas, racistas, preconceituosas e mentirosas e, como se ouviu no recente Congresso, fascistas. Normalizar esse discurso é grave. Vamos deixar que os nossos jovens, em idade de escolhas importantes para o seu futuro, sejam influenciados pelos slogans redondos do Chega, como outros de gerações anteriores foram? Será que não aprendemos nada com o passado? Será que a História não nos mostra que estas ações “inocentes” podem descambar em algo muito feio. Ventura está a entrar na cabeça dos nossos adolescentes, vamos ser coniventes com isso?

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt