Moderar para preservar a democracia

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O assassinato de Charlie Kirk, em plena universidade norte-americana, não pode ser visto apenas como mais um episódio trágico num país marcado pela violência armada. Ele é, acima de tudo, o reflexo de uma escalada perigosa: o discurso político transformado em arma, alimentando ciclos de ódio que já não se limitam às palavras e invadem a vida pública com ameaças e tiros.

Ao longo das últimas décadas, a liberdade de expressão consolidou-se como um dos pilares fundamentais das democracias ocidentais. O seu valor é inquestionável: garante a todos o direito de intervir no espaço público, de criticar, de propor e de contestar. Sem ela, não existe debate democrático. Mas essa liberdade carrega consigo responsabilidades. Quando usada para desumanizar o adversário, para disseminar desinformação ou para normalizar o ódio, abre caminho a uma violência que mina a própria democracia que a protege.

O caso de Kirk ilustra esta dinâmica. O jovem líder conservador de 31 anos, figura central da direita americana, foi abatido enquanto discursava perante centenas de jovens numa universidade. O presidente Donald Trump, atribuiu à esquerda a responsabilidade por uma retórica inflamada que, no seu entender, teria criado o ambiente que conduziu ao assassinato. É certo que Charlie Kirk era ele próprio um orador polémico, cuja narrativa frequentemente explorava divisões e que por isso era acusado de normalizar preconceitos e hostilidades.

Do que se sabe, até ao momento, o suspeito homicida, Tyler James Robinson, 22 anos, ter-se-á radicalizado em comunidades digitais antifascistas e anarquistas, onde encontrou uma retórica que justificava a violência como resposta à direita. As cápsulas de bala usadas no homicídio traziam mensagens como “Hey, fascist! Catch!” e referências ao hino antifascista italiano Bella Ciao.

À direita, o luto converteu-se em retórica de combate: a viúva, Erika Kirk, falou num “grito de batalha” e garantiu que “o movimento… não morrerá”, enquanto comentadores insistiam em “guerra” e “retribuição”. À esquerda, multiplicaram-se registos de escárnio contra Kirk e de exaltação do assassinato.

Este episódio lembram que a radicalização e a violência não são monopólio de um lado. Basta observar como aquilo que poderiam ser protestos legítimos contra a guerra em Gaza, em defesa da paz e dos palestinianos, se transformaram em manifestações violentas em várias capitais europeias, ecoando cânticos de “jihad” e até “morte aos judeus”. Em Paris, Berlim e Londres, as autoridades intervieram para travar apelos ao terrorismo e vandalismo contra sinagogas.

Aqui ao lado, em Espanha, também vimos, como a contestação política extravasa o espaço democrático. A edição de 2025 da Vuelta a España foi marcada por sucessivas interrupções de protestos pró-Palestina. A etapa final em Madrid acabou cancelada após bloqueios de estrada, confrontos com a polícia e manifestações. O primeiro-ministro, Pedro Sanchez, manifestou a sua “admiração” pelos protestos, o que pode incentivar ainda mais este género de ações.

Neste sábado, em Londres, a marcha “Unite the Kingdom” reuniu entre 110.000 e 150.000 pessoas em torno do ativista Tommy Robinson, para protestar contra a imigração ilegal. O evento terminou em violência: 26 agentes feridos, dezenas de detenções, tentativas de romper cordões policiais. Bandeiras nacionais e slogans identitários dominaram, enquanto via vídeo Elon Musk inflamava a multidão com um “fight back or die”. Um contra-protesto anti-racista juntou cinco mil pessoas. Ambos se envolveram em confrontos. Ficou exposta a fragilidade do espaço público quando se permite que discursos de exclusão e confronto sejam normalizados.

As democracias ocidentais enfrentam, assim, um dilema decisivo. Como conciliar a proteção da liberdade de expressão com a necessidade de travar os discursos que corroem a confiança social e instigam a violência? O caminho não passa pela censura, mas também não pode ser a complacência. Exige mecanismos legais mais eficazes que responsabilizem quem incita ao ódio, o reforço de regulamentos que obriguem plataformas digitais a agir contra conteúdos ilícitos e, sobretudo, uma cultura política que recuse a tentação de explorar o medo como arma eleitoral.

Moderação não é neutralidade nem fraqueza. É a afirmação de que os limites da democracia se encontram precisamente na defesa da vida, da dignidade e da pluralidade. Moderar o discurso público é reconhecer que palavras têm consequências. É impedir que se consolidem ciclos de radicalização que, mais cedo ou mais tarde, explodem em violência.

A lição do assassinato de Charlie Kirk é clara: quando o debate se torna guerra, todos perdem. Nenhuma democracia sobrevive ao ódio convertido em método. Cabe às lideranças políticas, aos meios de comunicação e aos cidadãos escolher um outro caminho — o da moderação que preserva a liberdade e o pluralismo. Porque sem essa escolha, as democracias arriscam-se a não resistir à erosão do próprio discurso que as deveria sustentar.

Mais inquietante ainda é a dúvida que se impõe: querem realmente a democracia aqueles que a corroem deliberadamente com narrativas de ódio e polarização? A experiência recente demonstra que muitos líderes se servem das regras democráticas apenas enquanto lhes são úteis, para depois as manipular ou enfraquecer. Quem transforma o adversário em inimigo absoluto, quem fomenta a desconfiança nas instituições e quem alimenta o ressentimento social não está a ampliar a democracia — está a miná-la. É por isso que a defesa da moderação é a própria condição de sobrevivência do regime democrático.

A história ensina-nos uma lição elementar: a violência nunca constrói, apenas destrói. E só conduz a mais violência — por isso a moderação é não apenas virtude, mas necessidade vital das democracias.

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