Minerar o quê? Não há planeta B.

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Por muito tempo, pensou-se que o mar profundo -- que começa nos 200 m de profundidade -- era um deserto de vida. É fácil entender porquê; afinal as condições pareciam incompatíveis com a vida como sempre a conhecemos. Desde logo, a ausência total de luz parecia um entrave óbvio ao estabelecimento de comunidades biológicas e, se juntássemos a isso as temperaturas muito baixas e a altíssima pressão, parecia claro que nenhuma forma de vida poderia singrar. No entanto, quando o desenvolvimento tecnológico permitiu alcançar profundidades maiores, depressa se percebeu que não podíamos estar mais longe da verdade: o mar profundo era casa de milhares de espécies e de tantas outras que eram descobertas a cada expedição. Apenas nos anos 60 se chegou ao seu ponto mais profundo, aos vertiginosos 11 000 m do Challenger Deep, na Fossa das Marianas, e somente em 2020 as duas primeiras mulheres chegaram ao mesmo lugar.

Trata-se, ainda hoje e apesar de tudo, do ecossistema menos conhecido do nosso planeta. O que se sabe é que pouco se sabe. E isto é muito importante para a aplicação daquela que é talvez a premissa mais básica no que toca à (boa) conservação ambiental: o princípio da precaução, aquilo que permite que os decisores adotem medidas menos arriscadas quando a evidência científica sobre um dano ambiental é insuficiente e o risco se afigura alto. A sua importância é tal que aparece em praticamente todos os tratados e acordos sobre biodiversidade e ambiente existentes. Há, portanto, consenso de que a aplicação geral do princípio como base para o desenvolvimento sustentável é fundamental.

A discussão sobre formas de explorar as grandes profundidades não é nova, mas tem sido sucessivamente adiada por várias razões: as condições adversas, o franco desconhecimento do meio, a dificuldade em desenvolver tecnologia que permita alcançá-lo de forma segura e a resistência em financiar algo que pouca ou nenhuma rentabilidade pode ter.

Citaçãocitacao ou se escolhe minerar e causar danos virtualmente irreparáveis ao mar profundo ou se escolhe esperar e garantir que, para já, esta atividade não avança. À luz do conhecimento atual, onde existe um, não existe o outro

A mineração em mar profundo -- que ainda não existe de forma comercial -- é, sem dúvida, uma das atividades que mais interesse tem despertado na indústria extrativa, alicerçada na ideia de que a extração de depósitos minerais e terras raras é fundamental para manter o padrão de vida do norte global, agora que (finalmente) não há dúvidas de que a queima de combustíveis fósseis já não tem lugar na nossa sociedade. A realidade é que alargar esta atividade aos ecossistemas marinhos perpetuará a nossa dependência de matérias raras e finitas. A forma de dar resposta às necessidades energéticas do século XXI é a transição para uma economia circular de aproveitamento e valorização dos recursos.

As atividades no fundo do mar para lá da jurisdição dos países são regulamentadas pela Autoridade Internacional para os Fundos Marinhos (ISA). Os 167 estados membros e a UE regulamentam e controlam o que se passa no solo e subsolo de 50% do planeta, mas poucos de nós já ouviram falar da ISA. A mineração em mar profundo tem sido o tema quente dos últimos anos e pode mesmo vir a materializar-se a partir de julho de 2023. Aquilo que, até agora, era ficção científica pode acontecer no fim do prazo da "regra dos 2 anos", uma provisão legal que permite que, na ausência de regulamentos mais robustos, e após comunicação por parte de um Estado da intenção de avançar com a atividade, isto possa finalmente acontecer ao fim de 2 anos com as regras que estiverem em vigor na altura.

Ora, em 2 anos, poucas coisas mudam no que respeita ao conhecimento do mar profundo. A comunidade científica considera que se está a, pelo menos, 10 anos de um conhecimento de base sobre este ecossistema que nos permita tomar decisões conscientes e informadas. Também por isso, 650 cientistas de 44 países assinaram uma carta a pedir uma moratória à atividade.

Nas últimas semanas, países como a Alemanha, França, Espanha e Nova Zelândia juntaram a sua voz àqueles que já anteriormente tinham pedido uma pausa precaucionária para permitir que mais conhecimento científico seja produzido antes de a atividade comercial conhecer o seu início pela primeira vez.

A comunidade internacional parece estar a posicionar-se na defesa do mar profundo; Portugal (representado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros), contrariamente a todas as suas declarações recentes no que toca à conservação marinha, expressou na ISA que considera urgente garantir a aprovação do código que vai facilitar o início da atividade. Até julho, Portugal pode ainda colocar-se do lado dos que pedem ponderação e precaução. Até agora, parece preferir investir o seu capital político a garantir que a atividade pode começar no próximo ano sob falsas garantias de proteção da biodiversidade e ecossistemas e a inexistência de danos sérios no meio. A questão é que isto coloca-nos perante um oximoro: ou se escolhe minerar e causar danos virtualmente irreparáveis ao mar profundo ou se escolhe esperar e garantir que, para já, esta atividade não avança. À luz do conhecimento atual, onde existe um, não existe o outro.

Membro da Sciaena- Oceanos # Conservação # Sensibilização

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