Mil anos de PS

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O título deste texto não visa qualquer analogia com o conhecido brinde estendido entre alemães que serviram o seu país e respetivo regime entre a terceira e a quarta década do século passado. "Um Reich de mil anos!", berravam eles, cada vez que juntavam os seus copos. Ora, tal ligação histórica seria imediatamente desmontada pela realidade e pela evidência dos schnapps servidos e senadores eleitos no nosso burgo. Não somos uma ditadura nem tão-pouco uma república de fetiche totalitário. Estamos perdidos, é certo, mas não rendidos à perdição.

O congresso das direitas, ou Encontro da Europa e Liberdade, como se fez chamar, apresentou mais polémica do que conteúdo e tanta diversidade quanto desencontro. Dele fizeram parte rostos controversos como André Ventura, e respetiva claque, e vozes moderadas, e assumidamente anti-Chega, como Miguel Poiares Maduro (do PSD) e Henrique Monteiro (jornalista e liberal). As duas primeiras lições da reunião não socialista serão, necessariamente, essas: a esquerda, de véspera, vilipendiou mais do que escutou; e a direita, no decorrer, desiludiu mais do que prometeu. Sobre a liberdade, pouco. Sobre a Europa, ainda menos, como notou o jovem analista conservador João Diogo Barbosa.

Seria também um erro subestimar o visado convívio como um só, generalizando e apoucando aquilo que se pronunciou no usufruto de solistas e não tanto de um só coro. Os seus promotores são, e digo-o com a autoridade de quem os conhece, mais institucionalistas do que ativistas. Os seus convidados foram, e observo-o com a certeza de quem os ouviu, tão distintos quanto contrastantes. A novidade? Rui Rio, depois de duas ausências marcantes, fez-se presente. A repetição? A esquerda, após seis anos no poder, repetiu-se crítica. Portas, crescente e quiçá irónica referência moderada, lamentou a governação realizada através "da gritaria das redes", preferindo "oferecer alternativa" do que "eliminar adversários". Rio, factual e flexível, denunciou a vénia do PCP e do Bloco de Esquerda às cativações e chegou mesmo a defender Passos, espectador presente, reconhecendo as limitações políticas impostas pela troika, um "abismo", diz Rio, chamado pelo Partido Socialista.

Nada disto é exatamente novo ou propriamente surpreendente, como o meu caro leitor compreensivelmente lamentará. Anda tudo na mesma ou, pelo menos, ao mesmo ritmo. O oportunismo de André Ventura, entrando na sala em plena sessão, interrompendo o discurso de Carlos Magno sobre as suas origens na esquerda e sentando-se à beira de Passos, não impressionou qualquer alma remotamente atenta.

Então, afinal, o que poderia ser notícia? Dois momentos: um bom e um mau.

O bom, para começar pelo otimismo, esteve na intervenção de Sérgio Sousa Pinto. O deputado do PS, consecutivamente vilipendiado nas semanas que antecederam o evento, arrancou aplausos repetidos na audiência através de uma mensagem não particularmente complexa: a liberdade do partido de Mário Soares. E ver um deputado cativar uma plateia com o nome e os ideais de um fundador da República sempre fornece alguma esperança àqueles, como eu, que temem o estado do regime, sujeito aos seus defeitos, falências e circunstâncias externas. Dito de outro modo: o regime não pode estar podre quando Soares ainda levanta alas à direita, à esquerda e ao centro, sendo ele, e não outro, o nome que mais define e caracteriza o sistema que de Abril desaguou.

O mau? O discreto que se concluiu atacado. Historiadores, académicos e ideólogos terminarem sessões com ovações a António de Oliveira de Salazar, das duas uma, ou é inconsciente ou inevitavelmente masoquista. Se é encontro das direitas que lhe tencionam chamar, não encerrem discursos com um homem que defendeu tudo o que a direita não deve representar: o culto da personalidade, o antiparlamentarismo, o receio do desenvolvimento, o mercado livre. Isso foi, e reconhece-se, o salazarismo. Não merece palmas nem retórica. É um passado que se quer passado, que não merece projeção ou presente contemporâneo. Uma direita que prefira regressar a esse passado, em ideologia, e reduzir-se à diminuição do Estado, como programa, não serve nada.

A não ser para mil anos de PS. E para isso, meus caros, não contem comigo.

Colunista

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