Memórias-dívidas: Álvaro Laborinho Lúcio

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Álvaro Laborinho Lúcio morreu na passada semana. Eu tenho duas dívidas diretas em relação a ele, espaçadas por uma década. A mais recente, quando lhe pedi, e ele imediatamente acedeu, a dar-me o privilégio de escrever um prefácio para um livro que publiquei em 2015. Fê-lo com a imediatez e generosidade que eu já lhe conhecia e ainda foi, uns meses mais tarde, ao sempre seu Centro de Estudos Judiciários, onde me honrou também com as suas palavras na apresentação pública desse trabalho. A memória-dívida mais antiga é a do momento em que o conheci: numa viagem de ambos a Bruxelas, no rescaldo da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia de 2007. Conhecemo-nos apenas no avião. Ou melhor, eu reconheci-o e sentei-me ao seu lado. Tínhamos um papel a cumprir – ele, o do sábio prudente, que representaria Portugal, a convite do Ministro da Justiça de então, Alberto Costa, num evento que não era o mais fácil; eu, o papel de seu “asa”, que levava o conhecimento mais factual da história conjuntural que estava em causa. E começámos a conversar. E essa conversa creio que durou pelo menos 48 horas, até aterrarmos de novo em Lisboa. Conversámos no avião, no hotel, no jantar, nas reuniões, nas ruas de Bruxelas escapando da chuva, até na Grand Place numa madrugada quase a iniciar-se, quando mais ninguém ali andava.

Não era meu amigo, mas sinto que perdi uma amizade. Porque, apesar dos quase quarenta anos que nos separavam, a sua inteireza, atenção ao outro e inteligência cativavam em pouco tempo e para sempre.

Exerceu sempre funções públicas: procurador, juiz, diretor do Centro de Estudos Judiciários, secretário de Estado e ministro da Justiça, vogal do Conselho Superior da Magistratura, deputado à Assembleia da República. Esteve na criação e na promoção de associações cívicas decisivas para a construção de um corpo vivo de cidadãos. Foi ator e autor, de livros de direito e de livros de coisas mais importantes. Que vida, que vida!

Foi ministro da Justiça entre 1990 e 1995, num tempo especialmente ingrato para a justiça portuguesa. Foi o tempo em que se sentiram os efeitos mais plenos da democratização, da criação de uma economia integrada na Europa e da explosão da contratação e do consumo. Com consequências também na explosão do crédito e, consequentemente, também no seu incumprimento, o que sentiu rapidamente nos tribunais. Foi o tempo também da epidemia de consumo de drogas, com reflexos na criminalidade e na reclusão. Mas, depois desse período de funções, continuou a pensar e intervir, sem alarde e sem vontade de fama expressa e espetacular.

Basta olhar à nossa volta, e acima e abaixo, para se reconhecerem as diferenças. Por estes dias, quando a mentira, a insensatez e o egoísmo fazem escola e galgam fronteiras, interiores e externas, quando o pudor perante a estupidez desaparece, é bom lembrar que nem sempre foi assim. Nem precisará de o ser.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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