As comemorações dos cinquenta anos da independência de Angola reabriram o debate público em torno da resistência do governo em reconhecer, entre os homenageados, figuras da luta de libertação alheias ao legado do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). Esta discussão, essencialmente política, tem sido alimentada por representações e “percepções” concorrentes e exclusivistas do passado, naturais no âmbito da disputa política pela memória, mas que pouco dialogam com a investigação histórica produzida nos últimos anos.Os Combates pela MemóriaNa batalha pelas representações do passado em Angola, o MPLA possui uma vantagem estrutural em relação à oposição. Esta vantagem é assegurada pelo domínio da infraestrutura da produção da memória oficial, uma consequência direta do controlo ininterrupto do partido sobre o aparelho de Estado desde a independência. No guião do passado elaborado pelo MPLA encontramos uma fórmula comum a outras retóricas bipolarizadas da Guerra Fria: a reivindicação do monopólio sobre a libertação nacional e a denúncia de grupos políticos rivais como agentes estrangeiros ou meros instrumentos do imperialismo, ou mesmo “mutumbulas”, traidores, bandidos e terroristas. Esta tentativa de impor uma narrativa hegemónica tem ainda outro efeito, o da exclusão sistemática de figuras, eventos e datas da história nacional que não possam ser conectados ao legado do MPLA, mas também o da produção deliberada de silêncios sobre episódios de divisões internas e lutas intestinas do movimento, numa tentativa de apresentar uma versão higienizada de unidade interna.Como gatekeeper do panteão dos heróis nacionais, o governo do MPLA tem sido, no entanto, obrigado a fazer concessões face às inúmeras pressões da sociedade civil angolana por homenagens cívicas mais inclusivas. Em 2019, o Presidente João Lourenço, após um longo processo negocial, autorizou a realização do funeral público de Jonas Savimbi, histórico líder da UNITA, na sua terra natal em Lopitanga, mais de 16 anos após a sua morte. A este gesto de reconciliação — e ainda mais significativo — seguiu-se em 2022 o enterro das ossadas e o pedido formal de desculpas do governo às vítimas do massacre de 27 de Maio de 1977. No seguimento destes precedentes, no passado mês de outubro, o governo do MPLA anunciou a inclusão dos históricos líderes nacionalistas Holden Roberto e Jonas Savimbi, os principais “signatários [angolanos] do Acordo do Alvor” juntamente com Agostinho Neto, na lista de condecorados na “classe Independência” com a Medalha Comemorativa dos 50 anos da Independência Nacional, após pressões das lideranças da FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e da UNITA (União Nacional para a Independência de Angola), das Igrejas e de vários actores da sociedade civil. Esta solução habilmente supera as controvérsias sobre os heróis nacionais, nomeadamente das paternidades do “Nacionalismo Angolano”, da “Nação angolana”, da “Angola Moderna” e da “revolução democrática angolana” e escapa à narrativa primária do “bom” (Agostinho Neto), do “mau” (Holden Roberto) e do “vilão” (Jonas Malheiro Savimbi)Tal como o MPLA, a UNITA, o maior partido da oposição, também enfrenta desafios relacionados com passados desconfortáveis – que designam como o “passivo da UNITA” - na sua batalha pela memória. A UNITA continua, de certa forma, a apresentar-se como um movimento de libertação, argumentando que a libertação total de Angola — refletida no seu próprio nome — permanece inacabada enquanto o MPLA resistir a uma alternância política genuína. Neste sentido, a missão original de libertação nacional da UNITA não é apresentada apenas como uma conquista consumada do passado, mas também como uma missão ainda ativa no presente.A UNITA legitima esta missão ao reivindicar uma longa genealogia de libertação, que se iniciou na luta contra o domínio colonial português, ganhou continuidade na Guerra Civil contra o que Savimbi apelidou de "imperialismo cubano-soviético", e culminou na autoproclamada autoria da criação de um sistema multipartidário em 1991 (“Segunda Revolução”). A reivindicação de um legado contínuo de libertação é fragilizada por episódios controversos, como a colaboração com as forças coloniais portuguesas entre 1971 e 1973 ou as ligações ao regime de apartheid da África do Sul durante a Guerra Civil. Por um lado, a UNITA tem negado a existência de um acordo com o regime colonial durante a Guerra de Libertação, que a investigação histórica contraria; por outro, justificou as suas ligações ao apartheid como uma reação defensiva em resposta à intervenção militar cubana em apoio ao MPLA — parte de um jogo circular de culpas em que cada lado acusa o outro de ter sido o primeiro a facilitar a intervenção de forças estrangeiras em Angola.A Historiografia sobre a FNLA, o movimento de libertação que paulatinamente se tornou o herdeiro da UPA-PDA, permanece muito curta, frágil e enviesada. Em rigor, depois da obra seminal de John Marcum (1969-1979) não há nenhum estudo histórico substantivo sobre a FNLA que analise a sua organização e ação nos processos da “luta de Libertação”, da “Transferência de Poderes” e da primeira guerra civil [1975-1991] - que incluiu a chamada “segunda guerra da independência” (1975-1978)- , já que a organização manteve de facto forças guerrilheiras operacionais no interior de Angola até 1987, momento em que foram integradas na UNITA, o que contraria a tese do seu colapso militar em 1978[i] (Fonseca Chindondo, 2025, p. 199).Num dos raros estudos históricos disponíveis, Christian Claassen dá visibilidade às duas narrativas internas e divergentes que persistiam no seio do Movimento de Holden Roberto: a que acentuou a dinâmica das recorrentes divisões internas, desde a fundação (1962) até ao “colapso”; e a que continua “to idolise and romanticise the FNLA and Roberto, referring to Roberto and the FNLA as being the ‘father of the revolution for freedom’, and having fought for the liberation of all”. Ambas as tendências, contudo, reclamavam as “virtuous qualities” da FNLA e de Roberto em comparação com o coevo regime e líderes do MPLA (2016), que rotulavam de corruptos e opressivos e acusavam de terem sabotado as tentativas da FNLA “at bringing peace and prosperity to Angola”. [ii]A mobilização da memória histórica como recurso de combate político é um fenómeno natural em processos de manutenção de poder ou de construção de narrativas de contestação a poderes estabelecidos, e está longe de representar uma excecionalidade da arena política angolana. Porém, estas narrativas estão longe de constituir um modelo de clareza para a compreensão do passado. Em particular no que respeita à descolonização, o debate em Angola caracteriza-se por um profundo desfasamento entre a produção historiográfica e as representações oficiais da memória.O Revisionismo Histórico e a DescolonizaçãoUm dos grandes problemas do uso do passado como munição no combate político é a contaminação inevitável da agenda historiográfica por mitos persistentes e narrativas lineares que tendem a simplificar a complexidade histórica de processos como a descolonização. Relativamente à transição para a independência de Angola, entre 1974 e 1975, uma das questões que tem suscitado um intenso combate político ao longo dos últimos 50 anos tem sido a procura do “pecado original” da descolonização e a identificação do responsável pelo primeiro tiro da Guerra Civil.Um dos mitos frequentemente convocados neste debate é a ideia de que o MPLA não procurou deliberadamente a tomada do poder durante a descolonização e de que a declaração unilateral de independência foi consequência exclusiva da persistente intransigência dos movimentos rivais em dialogar ou participar na competição eleitoral prevista pelo Acordo do Alvor. Esta é uma leitura defendida por Augusta Conchiglia, jornalista e fotógrafa italiana que, com Stefano de Stefani, documentou a luta anticolonial do movimento nas matas do leste de Angola em 1968 e mantem desde então e até ao ao presente um contacto de proximidade militante com o MPLA, tendo sido rotulada como a “a fotógrafa de Agostinho Neto”, e ter dedicado um livro à UNITA (1990), que é um clássico da literatura militante.[iii] Em artigos recentes sobre as comemorações do “cinquentenário da independência de Angola” publicados na Afrique XXI e, numa versão adaptada, no Público, Conchiglia interroga-se sobre o real contributo de Holden Roberto e Savimbi para a independência do seu país, e argumentou que “os factos reconstruídos por arquivos diplomáticos, relatórios internacionais e testemunhos da época” contrariam a tese de que o MPLA ambicionava uma tomada exclusiva do poder, alertando ainda para os perigos de “flagrantes tentativas de reescrever a história” e das “leituras alternativas” do passado angolano recente que procuravam reabilitar dois líderes – Holden Roberto e Jonas Malheiros Savimbi que não só não contribuíram para a independência de Angola, como proporcionaram “uma longa intervenção estrangeira”. [iv] Sobre estas percepções, duas notas. A primeira é sobre a merecida exclusão ou a injusta inclusão de dois dos três designados movimentos revolucionários Angolanos (a FNLA e a UNITA), e dos seus líderes, no panteão dos “verdadeiros e genuínos” representantes do Povo Angolano e seus libertadores.Esta dimensão da rivalidade foi fomentada pelos nacionalistas angolanos “revolucionários” desde e início da Guerra de Libertação, e traduziu-se, por exemplo, na competição (e invenção) das datas fundacionais e dos marcos patrimoniais e celebratórios do início da “luta armada de libertação”, e mereceu desde cedo um debate político que se estendeu aos “partidos políticos” (como as Nações Unidas os designavam) ditos pacifistas que emergiram no início e ao longo do processo com várias configurações e combinações. Todavia, na sequência do Acordo do Alvor (15.01.1975), a múltipla legitimidade da representação angolana e do contributo plural para a Independência ficou consagrado pelo Governo de Transição de Angola (31.01.1975) no primeiro ato legislativo reconheceu e exaltou “os feitos fundamentais levados a cabo durante a luta de libertação nacional pelos três movimentos de libertação, a FNLA, o MPLA e a UNITA” e estabeleceu como feriados “em todo o território nacional”, os dias 4 de Fevereiro, o 15 de Março e o 25 de Dezembro, evocando o “significado histórico (destas datas) na luta de libertação de Angola”: o 4 de Fevereiro de 1961, pelo “ataque às prisões de Luanda, dirigido pelo MPLA” (o que, sabemos hoje, não ser exato[v] e que a UPA/FNLA no passado também evocava discretamente); o 15 de Março de 1961, pelo “ataque generalizado no Norte de Angola dirigido pela UPA-FNLA”; o 25 de Dezembro de 1966, pelo “ataque a Teixeira de Sousa, dirigido pela UNITA”.[vi] A consagração institucional daqueles “feitos fundamentais” ainda que reafirmados pelo Decreto nº 30/75, de 7 de Abril[vii], não resistiu ao colapso do Acordo de Alvor e à transição violenta e autoritária que proporcionou. Com a República Popular de Angola estabelecida em Luanda, pelo Decreto 5/75 de 23 de Dezembro, a lista dos feriados “nacionalistas” foi expurgada do 15 de Março e do 25 de Dezembro, passando este a sê-lo apenas como “dia da família”, e configurou um modelo de evocação comemorativa exclusivamente centrado no partido único, o MPLA. Segundo o então Presidente da República Popular de Angola, António Agostinho Neto, e o Primeiro-Ministro, Lopo de Nascimento, as “datas de maior significado nacional” definidas pelo Colégio Presidencial - Lopo de Nascimento (MPLA), Johnny Pinock (FNLA) e José N`Dele (UNITA)- do Governo de Transição, não tinham “sido perfeitamente ajustadas às grandes datas da História Nacional”, pelo que com o novo decreto, as datas a celebrar como simbólicas da luta de libertação passaram a ser, em exclusivo: o 10 de Dezembro (1956), como “data de fundação do MPLA” (que hoje sabemos ter sido apenas em meados de 1960), depois “MPLA-Partido do Trabalho” (1980); o 4 de Fevereiro, como “início da luta armada” (1961); e o 11 de Novembro (1975), como “dia da independência”. Cinco anos depois (1980), foi acrescentado o dia 17 de Setembro à lista dos feriados nacionais, como “Dia do Herói Nacional e do Fundador da Nação”, evocativo do dia natal de Agostinho Neto.[viii] 50 anos depois, e por outra via, parece haver um regresso à narrativa pós-Alvor, revelando a facilidade com que é instrumentalizada a narrativa do passado da luta de libertação pela independência de Angola, vista pelo prisma dos Movimentos Revolucionários. Uma instrumentalização da história que já ocorria durante a luta de libertação – de que o plano da reescrita das biografias de dirigentes foi um bom exemplo, e que permaneceu nas décadas seguintes com a criação de comissões e comités de políticos e militares destinados à “escrita de verdadeira história de Angola” e ao seu controle.É claro que ainda permanece “fora da História” aquela que foi a circunstancial ou persistente agência de outros atores que pugnaram em prol da autonomia ou independência por vias similares de conflito ou através de soluções liberais e negociadas, como os movimentos ou organizações políticas dos “conservadores” e “moderados”, na época vistos como um “estranho nacionalismo” e um “estúpido pacifismo”, como os rotulou Henri Lopes, MNE República Popular Congo (04.02.1971)[ix]. Depois do 25 de abril, uns e outros, antigos, reconstruídos e novos, vagamente caracterizados como “democráticos”, “tribalistas”, e “personalistas” ou “conservadores” e “oportunistas”,[x] foram progressivamente marginalizados e excluídos da luta política legal, forçados à extinção, à integração num dos três movimentos de libertação revolucionários, ao exílio, ou a uma prolongada luta clandestina (como no caso da FLEC, até ao presente), privando o espaço politico angolano de elementos que poderiam eventualmente ter sido mediadores na superação das rivalidades que entrelaçavam a FNLA , o MPLA e a UNITA, como muitos anos mais tarde acabaria por ser notado por alguns dos protagonistas.[xi]Como historiadores, os autores deste artigo são particularmente sensíveis aos alertas relativos a revisionismos históricos. É precisamente por essa razão que importa verificar, em segunda nota, se os pressupostos apresentados por Conchiglia – a ausência de uma ambição de conquista de poder pelo MPLA no período da transição para a independência - encontram fundamento na investigação existente, a qual revela, na verdade, um quadro mais complexo e aponta numa direção distinta. Na obra seminal do historiador Jean-Michel Mabeko-Tali, Guerrilhas e Lutas Sociais: O MPLA perante si Próprio (1960-1977), o autor demonstra claramente que, à semelhança da UNITA e da FNLA, o MPLA não tinha intenções de partilhar o poder e aspirou igualmente a uma posição hegemónica durante a transição para a independência.Investigações mais recentes têm oferecido detalhes adicionais e consistentes neste sentido. Num capítulo publicado em 2025 no volume editado pela De Guyter Brill, Communist Actors in African Decolonial Transitions: Comparative Perspectives, os autores deste artigo debruçaram-se em particular sobre a complexa transição de Angola para a independência, baseando-se numa multiplicidade de fontes que incluíram, entre outras, novo material de arquivos portugueses e da Europa de Leste. Uma das características mais reveladoras desta documentação é a forma como a liderança do MPLA, à porta fechada, transmite abertamente aos seus aliados no MFA e no bloco soviético não só a sua intransigência em partilhar o poder, mas também tentativas concretas de o tomar de forma unilateral. [xii]Tentativas estas que precederam o Acordo do Alvor de meados de Janeiro de 1975, como revelou Iko Carreira, na qualidade de representante do MPLA, a uma delegação do governo da República Popular da Polónia durante uma visita oficial a Varsóvia em busca de apoios militares, em Agosto de 1975. Carreira relatou à delegação polaca que, no início de Novembro de 1974 – isto é, pouco depois da bem sucedida operação de ocupação militar de Cabinda pelo MPLA através de um “golpe militar” em 2 de novembro de 1974 “sob a liderança do Comandante N'Dozi” e com a participação do “sector progressista das forças armadas portuguesas estacionadas no enclave”[xiii], - o movimento tentou ocupar Luanda pela força, com o objetivo de assumir a liderança do Governo Provisório, travar o reforço de posições da UNITA e “da sempre perigosa” FNLA na capital e, deste modo, garantir uma posição dominante nas futuras negociações com Lisboa. Carreira revelou ainda que esta tentativa de golpe, com uma dimensão palaciana, falhou devido à hesitação do MFA em Angola em apoiar o plano, o que evidencia a existência de tensões com os aliados da esquerda portuguesa.Foi igualmente em Novembro de 1974 que o major Melo Antunes, o “arquiteto” da descolonização, se encontrou em Argel com uma delegação do MPLA liderada por Agostinho Neto, numa longa reunião (18-20.11.1975) que definiu o rascunho do que viria a ser o Acordo do Alvor e que patenteou o MPLA como o pólo negocial privilegiado da diplomacia portuguesa. Nas atas da reunião torna-se particularmente evidente a resistência persistente de Agostinho Neto a uma fórmula de descolonização que incluísse a realização de eleições para uma futura assembleia constituinte ou a uma alternativa que passasse pela elaboração de uma constituição acordada entre os três movimentos, a ser submetida a plebiscito no ato da independência.No início de Fevereiro de 1975, três semanas depois de Alvor e alguns dias após o início de funções do Governo de Transição, o quase sempre cirurgicamente referenciado cônsul americano em Luanda (Tom Killoran), informou o seu governo que, em Angola, a instabilidade que Alvor não travara, tornava plausível uma guerra civil antes da data da independência, através de uma de três distintas mas não exclusivas vias: a) um acidente, isto é “um incidente que provocaria uma escalada incontrolável da violência”; b) um golpe de estado calculado pela FNLA; ou c) uma “tentativa desesperada de golpe de estado por parte do MPLA, que sente a sua popularidade politica a diminuir.” [xiv] As medidas políticas do primeiro Alto-Comissário, Contra-Almirante Rosa Coutinho, nos últimos dias do seu mandato (pós-Alvor), como a nova lei de imprensa, a tentativa de imposição da unicidade sindical, o financiamento secreto do MPLA, denunciado pela imprensa não controlada (caso da revista Notícia), assim como a demarcação pública da autonomia do MPLA em relação a Alvor e ao Governo de Transição, promovendo o “Poder Popular” e as greves seletivas, e a “crise” da ocupação da Emissora Oficial de Angola por forças da FNLA para travar o que consideravam emissões exclusivamente pró-MPLA, são elementos que alimentaram aquela instabilidade.O Cônsul não se equivocou. Como revela a documentação do CCPA (Comissão Coordenadora do Programa do [do MFA] em Angola), em 5 de março, com a colaboração de militantes do PCP, recém-chegados a Luanda, e de quadros militares portugueses estacionados em Luanda, o MPLA tomou a iniciativa de um golpe militar para tomar o poder, que fracassou. Paralelamente a iniciativas similares da FNLA, o MPLA, com o prévio conhecimento do calendário da acelerada desmobilização das forças militares locais que integravam as Forças Armadas Portuguesas (Janeiro-Março de 1975), promoveu outras operações de força, com outras colaborações e tentativas de aliciamento (UNITA) , até ao bem sucedido golpe que conduziu à conquista de Luanda, no início de Julho de 1975, aqui já com a colaboração de um contingente cubano e do generoso armamento provido pelos amigos do “Leste” , um facto que naturalmente implica uma revisitação dos contornos, calendário e actores da longa intervenção estrangeira em Angola, o que fazemos no capítulo acima referido.O que pretendemos aqui sublinhar é que a tese de que o MPLA teria sido um ator político da descolonização sem ambições de controlo exclusivo do futuro Estado pós-colonial angolano revela profundas fragilidades quando confrontada com a investigação académica, potenciada pela disponibilização gradual de material de arquivo nos últimos anos, especialmente do ex-bloco de Leste, e pela exploração intensiva e sistemática de outros arquivos portugueses e americanos, pessoais e institucionais.O espaço público português, e em particular alguns média, tem dado visibilidade a narrativas sobre a experiência do colonialismo, a “descolonização” e o pós-descolonização nas antigas colónias africanas que estiveram sob o domínio de Portugal. E isso é muito importante. Não pode deixar de ser notado, a qualquer conhecedor mais exigente, que muitas destas narrativas são tendencialmente empáticas, missionárias ou mesmo combatentes, onde a «investigação histórica» tem um lugar meramente instrumental através do uso do “fishing method”. As razões para tal viés são múltiplas e incluem as afinidades e as responsabilidades por uma descolonização revolucionária autoritária, que no caso de Angola (como noutros), merece uma discussão substantiva sobre o seu carácter “exemplar” ou “desastroso” (mal sucedido), com os efeitos críticos de longo prazo. Ora, nesta matéria, o que é menos visível no espaço público em português, é a presença da história cognitiva, uma secundarização que enfraquece a possibilidade de um debate – para além das muralhas académicas – que certamente favorecerá uma cultura histórica mais ampla e problematizada..Uma história cognitiva e compreensiva do processo de descolonização ou sobre a Guerra Civil ainda permanece por escrever. O seu progresso será mais lento, enquanto estiverem inacessíveis arquivos, como os dos Movimentos de Libertação e os arquivos governamentais referentes ao período da Guerra Fria, que favoreçam o método da pesquisa sistemática, a triangulação dos dados e a polifonia. No caso de Angola, é difícil imaginar que tais documentos venham a ser tornados públicos, uma vez que o escrutínio académico da história recente de Angola é ainda visto como um risco político e um potencial desafio à legitimidade de um governo que ainda se debate com passados incertos e incómodos. Helder Adegar Fonseca Historiador, Professor Catedrático Aposentado, Universidade de ÉvoraJoão Fusco Ribeiro Historiador, Investigador do Centro de Investigação em Ciência Política (CICP), Universidade de Évora [i] Fonseca Chindondo, Angola. Memórias das FAL. O Avanço no Norte e a Guerra Psicológica, Luanda, Ed. Perfil Criativo,, 2025, p. 199).[ii] Christian Claassen “The Father of the Revolution”: History, Memory, and the FNLA Veterans of Pomfret", MA Diss., U. Cape Town /DH. 2016, p. 154[iii] Augusta Conchiglia (fotografias) e Joyce Lussu e Helder Neto (textos), Guerra di Popolo in Angola / Guerre du Peuple en Angola, Roma, Lerici Ed,1969/ e Genéve, ed.MSACP, 1969; Stefano de Stefani e Augusta Conchiglia, A Propópsito dell´Angola (filme documentário, 1973). Augusta Conchiglia é ainda autora de UNITA, Myth and Reality ECASAAMA.UK, 1990; e Agostinho Neto. da Guerrilha aos Primeiros anos da Independência, Luanda, Fundação AAN, 2019; Augusta Conchiglia, entrevista com .Adriano Mixinge (Programa "Margens e Travessias"), TV Zimbo 19.09.2024 https://www.youtube.com/watch?v=hFp9BDGjXdw[iv] Augusta Conchiglia, "En Angola, un cinquantenaire de l’indépendance sur fond de polémiques historiques”, in Afrique XXI, 03.09.2025 (https://afriquexxi.info/En-Angola-un-cinquantenaire-de-l-independance-sur-fond-de-polemiques); idem, “Angola. 50 anos depois da luta pela independência, a luta pela memória”, in Público (online) 26.10.2025. (https://www.publico.pt/2025/10/26/mundo/noticia/angola-50-anos-luta-independencia-luta-memoria-2152021)[v] Ver José Manuel da Silveira Lopes, O Cónego Manuel das Neves. Um Nacionalista Angolano. Lisboa, Veja, 2017); Idem, Lutem até Alcançarem a Liberdade: uma Leitura do “4 de Fevereiro” de 1961 em Luanda, Lisboa, Veja, 2021.[vi] Cf. “Decreto nº 1/75, de 3 de Fevereiro, ” in A Província de Angola, de 4 de Fevereiro de 1975.[vii] Cf. “Decreto nº 30/75, dos Feriados Nacionais,” in Boletim Oficial de Angola (BOA), 1ª Série, nº 30, de 7 de Abril de 1975, pp. 344-345, que fixou e pretendeu consagrar como feriados nacionais um conjunto das “datas de maior significado nacional”.[viii] Cf. Helder Adegar Fonseca: “Angola: presentes instáveis, passados imprevisíveis” in: José Manuel da Silveira Lopes, Lutem até Alcançarem a Liberdade, pp. 15-18.[ix] Sobre as correntes do nacionalismo angolano ver: Arquivo Nacional da Torre do Tombo/SCCIA: Livro 121, Relatório de Situação 101, de 22.03.1964, p. 8; sobre os partidos “conservadores”/”moderados” ver: ANTT/SCCIA: Relatório de Situação 158, 28.04.1965, p. 6-11.[x] Pedro Pezarat Correia, Descolonização de Angola. A Joía da Coroa do Império Português, luanda, Ler&Escrever, 75; idem, … da Descolonização. Do Protonacionalismoi ao Pós-Colonialismo, Porto, Book Cover, 2017, 407-410; Fernando Tavares Pimenta, Descolonização de Angola e de Moçambique. O comportamento das minorias brancas (1974-1975), Goiânia, Ed. UFG, pp. 82 e seguintes.[xi] Almerindo Jaka Jamba, Ecos de Colina. Memórias e Testemunhos, Luanda, Mayamba, pp. 140, 162, 188.[xii] H.A. Fonseca e J.F. Ribeiro, “Communists as agents of Decolonization in Angola´s Transition to Independence (1974-1977), in: H. A. Fonseca, Ch. Saunders, L. Dallywater (eds.), Communist Actors in African Decolonial Transitions – A Comparison (1957–1994), Berlim, De Gruyter, September 2025, pp. 151-188. As referências a seguir podem verificar-se neste texto.[xiii] Ver ainda:. Comandante Bolingo e João Lourenco, Cabinda Baluarte Invencível da Revolução Angolana, Luanda: Mindel, 1979, p. 14.[xiv] The National Archive: ADD:USDS: D750045-0400, 07.02.1975.