Em uma semana, António Costa assinou um acordo de concertação com os patrões, apresentou um Orçamento com uma redução da dívida para níveis pré-troika e tomou o pequeno-almoço com Angela Merkel em São Bento. Para alguém que se propunha virar a página da austeridade, romper a ortodoxia de Bruxelas e que raramente hesita em enfrentar o setor privado, não se tratou exatamente de uma exibição de consistência. Foi, por outro lado, uma soma de gestos políticos tremendamente eficaz..Com o seu governo a arder e o seu Presidente chamuscado, o primeiro-ministro teve, muito ironicamente, uma semana política bem-sucedida. Os Parceiros Sociais balizaram-lhe o Orçamento do Estado e o ministro Fernando Medina deu continuidade ao rigor financeiro da última década ("Não sou liberal, sou realista"). Além disso, a infelicidade das declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sobre a Igreja permitiu ao primeiro-ministro socorrer o político mais popular do país no momento mais impopular dos seus mandatos. No fundo, mostrar quem manda..Se as gotas da chuva engrossarão em 2023, não atingem ainda António Costa, apesar de ensoparem já os demais. Os casos e casinhos ficarem-se pelos seus ministros e a autoridade política resumir-se, desde o regresso do PS ao poder, ao primeiro-ministro é algo que contribui para essa perceção - obviamente errada - de que António Costa nada tem a ver com os vários desaires dos seus governantes..No próximo ano, o inevitável descontentamento social afetará essa imunidade do primeiro-ministro à fragilidade do seu próprio Executivo. Até aqui, a sua capacidade de reinvenção - única no sistema político português - foi-lhe suficiente. A partir de então, dificilmente será. O evidente recentrar ideológico do Partido Socialista - seja pelo fim da geringonça, seja pelo regresso de uma conjuntura desfavorável - tem uma tolerância em 2022 que não terá em 2023. A esquerda não vai parar de acusá-lo de ser de direita, e a direita não parará de acusá-lo de não ser de esquerda, sendo que ambos clamavam justamente o oposto há muito pouco tempo..O caso de Marcelo, tristemente, é outro. O seu desgaste, enquanto figura política, é claro antes de a crise sequer chegar. A relativização do número de abusos de sacerdotes católicos, a demora em recuar e pedir desculpa e a ideia - algo sinistra - -de que há uma campanha oculta para enfraquecer a sua Presidência são sinais que prenunciam um restante mandato menos feliz..Apesar da repetida associação de Marcelo Rebelo de Sousa a camaleões e cata-ventos, o Presidente não tem a capacidade de adaptação do seu ex-aluno, António Costa, ao que o rodeia. Tal notou-se com a chegada da maioria absoluta, em que o Presidente demorou a encontrar o tom, e agora, nas vésperas de "23, cuja incerteza torna a intermitência em pecado capital, Marcelo não vai deixar de ser Marcelo, como aliás veio já reassumir. Mas o país vai deixar de estar tão disponível para afetos, selfies e descontrações..Mesmo que o Presidente tencionasse alterar dramaticamente o estilo do seu exercício de funções, a pressão para responder a qualquer pergunta, para comentar qualquer assunto, para ir a qualquer lugar, seria insuportável. Ironicamente, a tragédia de uma reinvenção impossível abateu-se sobre aquele que tantos tomam por errante..Marcelo, farol que anteviu tantos desafios do país - o populismo, a estagnação, a pobreza, os abusos de uma maioria absoluta -, foi o primeiro náufrago desta tempestade..Não será o último..Colunista