Lugar de escuta

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Participei, no final de Fevereiro, numa conversa-debate sobre Pluralismo, Diversidade e Independência, por ocasião dos 36 anos da TSF. Estava entre antigos colegas de Carteira Profissional de Jornalista, título que “troquei” por novos rumos e compromissos, quando uma das questões trouxe para a mesa um inédito programa de estágios, lançado pelo Público para promover diversidade nos media.

Como defensora acérrima de medidas de acção afirmativa, que favoreçam o acesso de pessoas de grupos sub-representados a todos os espaços, expliquei que recebi com agrado a iniciativa. Quanto mais não fosse porque é evidente que nos desertos de diversidade em que os órgãos de comunicação social se continuam a arrastar, seria encorajador ver essa excepção transformada em regra.

Ainda assim, entendo que o impacto verdadeiramente transformador virá da implementação de políticas para a diversidade, equidade e inclusão (DEI), muito além de medidas de recrutamento, e de iniciativas pontuais.

Para quem considera essa mudança irrealista e complicada, ficam duas singelas possibilidades: por um lado, a adopção de mecanismos para a diversificação das fontes de informação, porque favorece a mudança de perspectivas e narrativas; e, por outro lado, a formação em DEI, porque permite despertar consciências para a relação entre diferenças e desigualdades.

Acresce a essas propostas um outro aspecto merecedor de reflexão: porque é que a ideia de promover novos acessos nas equipas surge tantas vezes ligada a planos de estágio? Não haverá no mercado profissionais experientes que também possam ser mobilizados para essa mudança? Até que ponto o foco em quem está a começar não é revelador de tiques paternalistas e fantasmas de rebelião, e inibidor de uma mudança institucional que pode surgir a partir de lideranças diversas?

Importa pensar sobre isto de forma construtiva porque, de outro modo, continuaremos a repetir fórmulas que, por mais bem-intencionadas que sejam, não têm impacto na estrutura.

Pior: produzem o efeito contrário ao desejado, em que um desempenho aquém da excelência tende a validar preconceitos, reforçar vieses e justificar narrativas de desintegração. Do tipo: “Demos-lhe uma oportunidade, mas não soube aproveitar.”

Não quero com isto dizer que as exigências têm de ser revistas em baixa para facilitar a inclusão de grupos sub-representados, mas convido a que se reflicta sobre a margem de erro tolerada. Ao mesmo tempo, defendo que muitas vezes é necessário ajustar procedimentos para combater exclusões. Porque rever ajuda a ver melhor. Ver melhor ajuda a fazer melhor. Fazer melhor ajuda a viver melhor.

Mas só seremos capazes de fazê-lo se, nas nossas interacções, substituirmos disputa por escuta. Porque enquanto insistirmos em ver na crítica um ataque, e enquanto persistirmos na deslegitimação de outras vivências, continuaremos a envenenar o diálogo.

Foi exactamente isso que expliquei a quem, esta semana, me ligou para tentar perceber como é que disse o que disse naquele painel sobre Pluralismo, Diversidade e Independência, por ocasião dos 36 anos da TSF. Agradeço a busca por um entendimento, mas considero que ela só se impôs por ausência de escuta: nesse encontro, limitei-me a partilhar a história que ouvi de uma pessoa cigana, antiga estagiária do Público, que, num outro debate há cerca de dois anos, relatou ter sido impedida de escrever sobre a sua comunidade.

Do outro lado da linha, garantiram-me que isso nunca aconteceu, e lembraram-me uma série de valores professados pelo jornal, visíveis em várias escolhas editoriais. Não contesto, até porque o leio diariamente, justamente por reconhecer no título algum pluralismo.

Mas não é a percepção externa de uma leitora ou de vários leitores que está aqui em apreciação.

Neste caso em concreto, há um exercício de autocrítica que, a meu ver, é mais relevante fazer: se a estagiária cigana não foi impedida de escrever sobre a sua comunidade - e se até recebeu luz verde para fazer uma reportagem com esse recorte, mas que nunca foi publicada, conforme me foi transmitido, e posteriormente confirmado pela própria -, porque é que ficou com essa convicção?
Que conversas ficaram por fazer? Alguém escuta?


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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