Locomotiva alemã

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Tendo nascido em 1885 e morrido em 1970, o escritor François Mauriac ouviu certamente dos pais a memória da Guerra Franco-Prussiana e viveu ele próprio as duas Guerras Mundiais. Não admira, assim, que quando lhe falassem da eventual reunificação alemã, respondesse que gostava tanto da Alemanha que preferia que houvesse duas. A frase ganhou popularidade já depois da morte de Mauriac, quando a queda do Muro de Berlim em novembro de1989 abriu portas finalmente a essa reunificação, que se concretizou em outubro de 1990. E passou a ser atribuída muitas vezes ao presidente francês François Mitterrand ou à primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, na verdade servindo, sobretudo, para ilustrar as dúvidas que alguns líderes tinham sobre o novo colosso europeu em que a RFA, a República Federal da Alemanha, se tornava com a extinção da RDA, a República Democrática Alemã.

Mesmo a nível demográfico, se até então França, Reino Unido e RFA tinham estado muito próximas, a Alemanha reunificada tornou-se, efetivamente, o mais populoso país da União Europeia, e por boa margem. E, claro, mesmo com as dificuldades iniciais de integração de uma metade leste que abandonava o sistema comunista, também do ponto de vista económico a Alemanha emergiu como o país com o maior PIB da União Europeia. Ainda hoje, e apesar das dificuldades da indústria alemã nos anos mais recentes, o país é a maior economia europeia e a terceira do mundo. E é indesmentível que politicamente o país agora liderado pelo chanceler Friedrich Merz, democrata-cristão, tem vocação, e obrigação, para ajudar a UE a encontrar a resposta para o duplo desafio da invasão russa da Ucrânia e da alteração da relação transatlântica com os Estados Unidos. Isso obriga a Alemanha a repensar-se, e num contexto político interno complexo.

“A Alemanha está atualmente a redefinir a sua posição na Europa. Devido à sua dimensão e peso económico, esta reorientação é crucial também para os seus parceiros da UE. Após os anos Merkel e a breve fase da coligação do ‘semáforo’, o panorama político em Berlim está a remodelar-se. Questões como as guerras, as alterações climáticas, a migração, a NATO e a aliança transatlântica estão a ser reavaliadas internamente. Além disso, a Alemanha tem agora, pela primeira vez, dois partidos populistas relevantes. Precisamos de falar sobre estes desenvolvimentos, pois também influenciam a forma como a Alemanha irá atuar a nível europeu no futuro”, diz Manuel Knapp, cientista político alemão, diretor de Estudos da Academia Europeia Berlim, na entrevista que o DN publica nesta sexta-feira.

O “precisamos de falar sobre estes desenvolvimentos” tem muito que ver com a necessidade de explicar aos parceiros da UE o que vai fazer a Alemanha de Merz, que lidera um governo de aliança entre a sua CDU/CSU e os sociais-democratas do SPD. Para se perceber a tal complexidade da política interna, pela primeira vez um governo da CDU/CSU coligada com o SPD não corresponde verdadeiramente ao conceito de Grande Coligação, pois o segundo maior partido é a AfD, de extrema-direita. A nível externo, por causa da guerra na Ucrânia lançada por Vladimir Putin, em fevereiro de 2022, e da nova visão da NATO defendida por Donald Trump, desde que tomou posse para um segundo mandato presidencial em janeiro deste ano, a Alemanha defende que o reforço do investimento europeu em Defesa é vital para a segurança própria e dos parceiros. Isso choca com a desconfiança que alguns têm ao ver o rearmamento alemão como prioridade e a suspeita de outros de que há uma estratégia oculta para relançar a indústria germânica.

Pelo peso que tem na Europa, em especial depois de ter deixado de ser as duas metades que o Nobel Mauriac via como boa solução, a Alemanha é incontornável para o sucesso da UE e vice-versa. Isso significa que é imperativa a solidez da relação de confiança entre Berlim e as outras 26 capitais, desde logo Paris. E exige-se uma certa ousadia, não nos deixando ficar presos em preconceitos herdados de experiências trágicas de outras épocas, ou em situações mais ou menos traumáticas mais recentes, como a crise da Troika. Não é época para impasses ou meias soluções, mas para verdadeiro arrojo.

Volto a citar Manuel Knapp, que na dita entrevista sublinha que “se a Alemanha e a Europa tiverem uma visão política limitada, ambas perderão poder de ação. O que precisamos são de princípios orientadores europeus claros que incluam e considerem os outros países europeus e os seus cidadãos - visões que não sejam apenas tecnocráticas, mas também socialmente inspiradoras. Estou convencido de que estas visões sérias para o futuro encontrariam terreno fértil tanto na Alemanha como na Europa”.

Depende tudo muito de Merz, que comanda a locomotiva, depende igualmente da relação que Berlim construirá com os outros 26 (e até certo ponto com o Reino Unido do pós-Brexit), depende também daquilo que querem os líderes europeus para cada um dos seus países, mas também para o projeto europeu. Estejamos atentos à Alemanha.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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