LLM português. O 'Amália' saberá fazer espantalhos?

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Há uns anos, numa mudança de casa, tinha de lado um caixote com CD e DVD inutilizados. O meu pai percebeu que o destino desse caixote era o lixo, mas viu ali uma solução para um problema. Todos os anos, as figueiras de que cuida eram tomadas de assalto por bandos de aves que não deixavam sequer o fruto amadurecer. No dia seguinte à nossa conversa, já as árvores reluziam com dezenas de CD suspensos e nenhum pássaro se aproximava delas. Nesse ano pelo menos (porque as aves também aprendem), não faltaram figos lá em casa.

Também por essa altura, um amigo mostrou-me com orgulho uma engenhoca de sua autoria. Qual MacGyver, munido de dois clips e um pedaço de cordel fino, arranjou forma de manter suspenso o tampão do porta bagagens do carro, cujo suporte de plástico se havia partido.

Mais recentemente, uma amiga também me deu conta do seu momento “tcharam”. Tinha umas botas que adorava, ainda impecáveis, mas que, com o uso começaram a libertar um odor que a incomodava. A razão tinha a ver com o material do calçado e, naturalmente, com a sua transpiração corporal. Foi então que pensou que se todos os dias passava roll on nas axilas para evitar a transpiração, porque não fazer o mesmo na planta dos pés. Problema resolvido. O gesto passou a fazer parte da rotina diária e estou seguro de que ainda hoje tem as botas lá por casa.

Os três casos ilustram uma faceta que muitas vezes é descrita como uma característica típica dos portugueses: a capacidade de desenrascar. Na Web Summit, Luís Montenegro anunciou que Portugal iria desenvolver um modelo LLM (Large Language Model) em português – programa de Inteligência Artificial (IA) que pode reconhecer e gerar texto, entre outras tarefas – e explicou porquê: “Para inovarmos em português, preservando o nosso idioma.” A versão final só deverá ganhar vida em 2026 e o nome já é conhecido: Amália

O primeiro-ministro acredita que a ferramenta irá facultar, “a cada aluno, um tutor educativo de IA”. O potencial é gigante, mas, como em quase tudo na vida, há o reverso da medalha. Como assegurar que o espírito criativo e crítico do aluno não sucumbe à facilidade de uma ferramenta capaz de lhe dar e escrever resposta para quase tudo? Como impedir que o chamado o síndrome “Dr. Google” - a tendência do cérebro para reter menos informações, por falta de estímulos, pois uma simples pesquisa no motor de busca resolve imediatamente a dúvida - se desenvolva em idades cada vez mais precoces? Como garantir que os mais jovens não só vão crescer melhor preparados, com mais acesso a informação, mas também aptos para resolver problemas de forma autónoma, sem muletas? Capazes de improvisar e, já agora, de ver espantalhos em CD prestes a ir para o lixo.

Se queremos um LLM português, que “utilize a nossa cultura ao serviço da inovação”, como sublinhou o PM, então que alguém ensine o Amália depressa que o “desenrascanço tuga” também faz parte da identidade nacional e merece ser cultivado junto das gerações mais novas.

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